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Flash.

por Pedro Ramos, em 08.10.22

 

Sentado na Piriquita, preparado para rilhar um naco de travesseiro, como fizera antes, em longas noites loucas de alta lua: 

Estou necessitado de um golpe de asa. Algo absolutamente surpreendente.

O seu olhar era um bocejo, disperso sobre os vidros límpidos da doçaria. 

Preciso mesmo de tirar um coelho da cartola. Deixar estes merdas todos de queixos caídos. 

E sorvia um pouco mais do seu delicioso café morno. Demorava sempre algumas eternidades a finalizar o café. Usufruía do final amargo, como fizera antes, em longas noites loucas de alta lua: 

Estou necessitado de um golpe de asa. Algo absolutamente surpreendente.

Isto dissera encarando uma mulher esguia, muito quente, na iluminação débil do apartamento.

 

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publicado às 18:50

Como no cinema.

por Pedro Ramos, em 05.10.22

 

Penso em ti. Tenho a noção subjetiva de me liquefazer. Observo-me num refluxo sobre a bancada da cozinha. É o fim da tarde. Cai no exterior dos vidros uma espécie de algodão doce, flocos de neve, matéria frágil e gélida, porém melosa. Estás sentada numa cadeira a descascar fruta. Olhas para lado nenhum, entre os dedos, milimétrica, uma faca afiadíssima. Uma música qualquer inunda o espaço como uma explosão calma. Interrompes por vezes a tarefa e dizes num tom distraído, alegre: amor. E o meu corpo liquefeito transborda como num copo até junto de ti, recompõe-se muito lentamente, ganha forma e ordem, ocupa o seu lugar doméstico. Depositas na minha boca um gomo de laranja, e logo torno a ser esse gás ansioso que escorre pelo chão, resumido e silencioso como o fim da tarde. Alguns segundos depois, ainda a mesma música, explosão calma, uma miúda pequena surge perto de ti com uma alegria infantil, florida e cheia de cheiros novos. Sorris prolongadamente e dizes: amor, enquanto lhe depositas na boca um gomo de laranja, tosco e muito doce, com a ponta do indicador ajeitando o pouco sumo que escapa pela esquina dos lábios. A tarde vai morrendo tão devagar. Lá fora as árvores, os frutos. Cá dentro a casa. 

 

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publicado às 22:50

BELIEVE IN THE FUTURE.

por Pedro Ramos, em 12.09.22

 

Parece agora haver quem olhe por cima. Não escrevo há demasiado tempo. Passei a eternidade entretido com filmes inúteis. Descontinuidades, ruidosas paisagens. Aos solavancos é que se reinicia a frondosa marcha. Retorno à carga, labor e sabor. Na TV um carro funerário, cortejo lento. Pelas matas da Escócia. Há pouco um filme soturno, Sean Connery na sombra, qualquer coisa sobre Outubros vermelhos e outras memórias de contexto. Frias, as guerras e os mapas, as matas densas e a Escócia, Capadócia que que cavamos, tanta fachada. Sempre um alerta nuclear, uma nova ameaça, renovadas maneiras tristes de ir morrendo, não viver ainda. Sempre a merda do futuro. Sempre um desamor de patos, memórias de latas de feijão, todo o raio que me parta. Recebi no email uma análise astral especializada, personalizada para a minha anatomia celeste. Li:

 

BELIEVE IN THE FUTURE 

This is an expansive time for you to let go of any doubts and concerns about where you're heading... 

 

Entrou a chuva de setembro e o mercúrio retrógrado. Há uma pluviosidade fina que aquece por dentro os vidros do carro num bafo marítimo. Recordo a esse propósito as grandes geadas da minha infância, num caminho para a escola a esbarar (escorregar, em transmontano) pelos passeios de cristal. Tem sido um ano cheio de anos dentro. Milhões de turbilhões em corações, ao alto. Ainda agora, luzes de polícia e um tipo de arma branca na mão, ali à porta de casa, flagrante delito no roubo de catalisadores (respeito pelos clássicos). Ainda agora, uma confusão na mercearia, gomas vegan, novos jardins, cervejas a mais no Príncipe Real, um instante virtuoso, milhões de improviso em corações ao alto. Um casal estrangeiro a esganar um violino, num coreto. Era abril. E o sono das avenidas era espástico e alegre, e caminhei milhões de quilómetros para te reaver, limos no fundo de um rio tranquilo. Comecei com entusiasmo o projeto do meu Grande Romance, que entretanto abortei. Depois, comecei com entusiasmo o projeto do meu Grande Romance, que entretanto abortei. Dois abortamentos num só ano, cansaço das minhas vísceras, vergonha dos meus olhos. Vinte e Seis Anos. Believe in The Future. Sempre a merda do futuro. 

O problema, acima de tudo, é a lua em Sagitário. Pop-up astral: 

 

REMEMBER WHAT IF FELT LIKE TO BE A TEENAGER.

 

Um total absurdo. A adolescência devia ser como as dores de dentes: ninguém se lembra do que sente até sentir outra vez. Ao contrário do amor, cuja memória primitiva devia vir connosco, um pacotinho de açúcar na bolsa da camisa para os momentos hipoglicémicos. Não há maior tragédia do que chegar ao fim sem noção do princípio. E por esse caminho, mata escocesa, todas as paixões são uma demência precoce, patologia não codificada. Pergunto pela senhora enfermeira, há algum tempo que não a vejo, as férias desencontradas são sempre um disparate de verão português macio. Dizem-me: está de período de nojo; morreu-lhe um filho. Mata escocesa, densa e escura, agora já não a Rainha mas alguém muito mais importante: o filho da enfermeira. Morreu novo. Período de nojo. Ninguém devia morrer nunca. Nem os filhos, nem o amor, nem os romances. Os filhos de todas as enfermeiras do mundo deviam fazer o que os filhos das enfermeiras fazem: conduzir um seat ibiza, fazer férias em Marrocos, rever o 007 do Sean Connery, comer hambúrgueres em frente à praia, topar miúdas luminosas. 

 

BELIEVE IN THE FUTURE.

REMEMBER WHAT IF FELT LIKE TO BE A TEENAGER.

RIP.

 

 

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publicado às 12:46

Pausa.

por Pedro Ramos, em 20.08.22

 

Quando encerramos o pão a nascer dentro do forno ficamos contemplando, lá fora, a alegria do fumo. E das chaminés fumegantes da aldeia, em plenas noites de inverno, também a visão do fumo que trepa nos fica sempre na memória. Há uma continuidade profunda nestes lugares de fé. As casas envelhecem, e delas os proprietários, as cabras e as flores. Mas o amor telúrico - agrícola, concreto - é uma coisa que não cessa nunca. Algumas coisas não cessam nunca. A vida bem vivida impõe-se, involuntariamente, como uma religião: a boa vida bela não ascende como o fumo, antes fixa pesados os pés à terra pura, na germinação de plantas de comer e na pele de filhos. É assim na aldeia, se antes de adormecer esvoaçarem loucos olhares, voo rasante, por cima de algumas linhas poéticas. O Daniel Faria, desassossego sossegado. Morrer será como receber no correio uma epístola das finanças. 

 

 

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publicado às 22:26

Ainda não.

por Pedro Ramos, em 18.08.22

 

Ainda não estou lá. Ainda não cheguei. Vinte e seis anos. Vejo que andas perto, fico um pouco mais feliz. Eu ainda não. Persisto acumulando distância e gerúndios. A mesma chuva molha-me todos os dias de maneiras diferentes. Não seco a roupa: queimo-a. O mesmo pedirei que façam um dia com a minha pele. Sinto a morte roçar-se a mim numa sensualidade profunda. Sinto abismos. Vejo-te melhor, isto é, sem mim, como esfregar os olhos depois de acordar. Aposto que te sentes como esfregar os olhos depois de acordar. A minha miopia não a curam lentes. In do lentes me trazem, antes, os caminhos, as lonjuras do hábito, o raio que os parta a todos. Eu quero o meu quintal, as minhas flores, os meus filhos. Ainda não estou lá. Ainda não cheguei. 

 

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publicado às 00:14

Auto-sabotagem.

por Pedro Ramos, em 07.08.22

 

Vou e venho e volto a ir. Tenho mais centenas de quilómetros desta autoestrada nos pés do que morangos no quintal. Entre o ir e o vir perco alguns momentos de luz: o nascer do sol no fundo dos olhos da minha mãe; a dança frenética do aspirador; a alegria da terra seca quando recebe mais umas gotas de água. Ainda agora aqui estive e logo regresso, sei lá para onde, quando chego ao lado de lá já perco da memória as curvas do caminho. Vou na noção de voltar e volto na noção de ir, é um desaforo escandaloso. A minha avó, que aos 60 anos assentou os seus felizes arraias numa casa no centro da aldeia, e dali não mais saiu, jamais entenderia este vai-e-vem desgastante. Vou cantando desvairadamente playlists de improviso, começo com a Mitski e vou por aí, estando sozinho canto tão alto como se gritasse, e grito como se chorasse, e arranco das paredes da viatura as suas espessas camadas de esperança. É como canta o Tim Bernardes sobre os seus 26 anos: um centro, um norte que eu quase pressinto / que eu perdi ou que ainda vou encontrar. Mas estes são os meus 26. Pertenço-lhes como eles me pertencem, nas leis intermutáveis da idade. O tempo é uma autoestrada feita do pó da passagem. Sou minha própria memória. E cada curva traz novamente um corpo de pó e luz: o meu pai comendo maçãs no alpendre; a minha avó de estacas no chão; o céu imenso azul por cima; as luzes de agosto nas festas da aldeia; a dança frenética nunca acabada do aspirador. Vou ali a Lisboa ver se me ilumina, mas é na Aguda que morro, é no Marão que desfio as minhas dores num novelo, é lá no fundo do Douro que se fecunda a memória do meu avô. Coisas minhas. Os meus 26. Fecho os olhos, pronto para chorar. Mas logo a estrada me chama novamente, preso a esta auto-sabotagem. 

 

 

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publicado às 21:52

Todos os dias.

por Pedro Ramos, em 03.08.22

 

na fresta de luz matinal 

entre o alvor e o trabalho 

sobra um curto espaço 

ínfimo espaço infinito 

para navegar alguns poemas

 

dois poemas e meio,

para ser exacto

 

depois anuncia-se o rolo compressor 

de todos os dias 

 

muito calado todos os dias

 

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publicado às 09:34

Senhora do nepalês.

por Pedro Ramos, em 19.07.22

 

Conhecemos no nepalês uma senhora de 88 anos que nos engarfou em conversa com uma genica fabulosa. No sítio de onde eu venho tudo morre cedo. Fico intrigado com estas personagens longas, que passeiam pelas avenidas e nunca verificam a cor do semáforo. O molho era bastante picante. 

 

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publicado às 10:28


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