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Infinitas são as formas de avançar para o papel, como de avançar para a vida. Um dia novo é página feita a contragosto, chega sem pedir licença, e a tinta lá vai permeando os carreiros como no tempo em que, de sacho em riste, cavava os trilhos da água na herança do poço. É preciso aprender a partir sem plano. O risco é baixo. Apenas um texto sereno, como as ruas antes de haver prédios e o chão antes de haver ruas. Não é o mesmo que partir num barco. Não há intempéries na contemplação. Existem, no limite, sobressaltos. A emoção trava o peito, esquecemo-nos de um batimento, algures perdido na tira de ritmo. A respiração aprofunda-se, e lembramo-nos de que os pensamentos eloquentes estão todos dentro desta caixa de osso. É claro que existe deus. É claro que há demónios e outros absurdos representantes dessa verdade infantil que é o Mal. Há poucas palavras para o amor. O amor tem um arsenal discreto. Não sobrevive em alto mar. O amor é o que acontece nos intervalos do mal, como no tempo em que a minha avó virava costas e eu pegava na mangueira, dirigia-a para o sol e dançava no festival chuvoso da alegria. Estas palavras não significam nada. O seu sentido, se existente, provém do encadeamento escrupuloso e rápido. Estou construindo uma linda escadaria a cada passo dado, e no momento em que o pé pisa o degrau, logo outro nasce. A terra molhada lá se lembra do pé de feijão, que vem dizer adeus à cabeça do húmus, como quando, na escola, experimentávamos a excitação de ver nascer raízes no algodão humedecido. Ou como no dia em que entrei no teatro anatómico, aproximei-me a medo de uma mesa de alumínio, e segurei com as minhas próprias mãos o crânio de um homem morto, com seu conteúdo apropriado, e pensei: são isto as ideias.
Pieter Claesz, Skull, Lamp, Book, and Pen, 1628.
Há um fogo que arde meigamente, é calor nos pés de um pobre. Lembro da infância a alegria genuína de ver a lareira crepitar, a excitação da fagulha atrevida que se escapava para o conforto do sofá e deixava uma pequena marca negra depois de se apagar. Anos mais tarde, vi no serviço de psiquiatria o braço purgado de uma rapariga a quem a ponta do cigarro acalmava dores maiores. O vício de sofrer, gerir focos de incêndio.
Em miúdo era esse fascínio do fogo que me levava a ser, proativamente, o empreendedor da sistemática colocação de madeira na chapa em brasa. A avó criticava o abuso, talvez porque as costas se lhe lembrassem do peso dos toros, dos cepos e restante léxico aldeoso (esta palavra não existe, mas é macia). A criança que eu fui, apaixonada pelo brilho como todas, insistia no remexer da brasa, na potência do fole, sempre em crescente estrangulamento.
O fole gritava o vento que animava o fogo, e eu era a brasa de um lume que ardeu antes de mim, e cuja memória conquistei a pulso na confusão de álbuns fotográficos. Às vezes o fumo refluía para dentro da casa, e eu lá percebia que o vento do mundo era mais forte do que o vento do fole, apesar do trabalho dos meus braços infantis. Tudo isto, claro, são lições do fogo.
Anos mais tarde, creio que no fatídico 15 de outubro de 2017 (o dia é o símbolo), sei que era domingo, regressava eu de carro, sozinho, da casa-casa para a casa-faculdade, isto é, casa-futuro, quando um mar de labaredas se ergueu nas margens da autoestrada, e veio acompanhando durante talvez meia-hora o meu caminho assustado.
Ver desapontada a minha ideia infantil do fogo-manso, simplificação para o calor necessário nas noites transmontanas, e desfazer-se (desintegrar-se) como o mato denso que me rodeava, onde pinheiros se transformavam só na sua escaldante sombra de cinzas, fez-me perceber muitas coisas indizíveis sobre a natureza das coisas.
O mesmo fogo, a mesma chama, o mesmo calor. Todas as mesmas coisas iguais, e no entanto o passado e o futuro, o mal e o bem, mãos dadas, o medo desgraçado de quem se arrepia e chora.
O meu interior-passado feito, num instante de clarividência, o interior de um país-corpo inflamado, agonizando ao abandono, e cada oliveira arrepiada na pele da minha avó-cansada, balançando na varanda-que-já-não-há e contemplando o desespero dos homens-novos, imunes ao fogo.
Porque a faca não corta o fogo, / não me corta o sangue escrito, e a faca que corta o pão artesanal traz a memória digital do fogo-manso que fez da massa o pão, e outras coisas extraordinárias. Graças a deus me forjei.
L’Incendie II, ou Le Feu (1944), de Maria Helena Vieira da Silva
Para ser grande, despedaça-te. Sê fragmentado, sofrido. Meio anjo sagrado não encontra no conforto da carne mais do que uma pausa para novo desarrumo. Neste chão de terra molhada, nu, digno de riso e indignidade, como se faz com os abutres de hálito cítrico, quando enfim devolvem ao travestido lume das cigarras o seu fel queimado.
Agarrado às oliveiras, desalmado, abana dos ramos curtos o seu desespero: mas nenhuma azeitona cai no chão de sombras, nem no recorte da lua se adivinha providência. Como vim parar aqui, pensa o sujeito. Por que montes desgraçados, campos maltratados, hortos desdenhados me movi. O inferno são os outros, porém todos somos outros dos outros, remexidamente. A algazarra de cães doidos na distância não me orienta no caminho de casa.
Fossem de lâminas luzidias minhas mãos, e gumes meus dedos, e unhas minhas unhas: esgravataria a terra inteira até encontrar a luz, a casa, o caminho. Assim reza o peregrino na sua fé sem santuário, abrigo sem tecto. Anjo caído, mais do que celeste, em si mesmo. Como dizer: encontrado. No seu olhar arrastado, pés dilacerados pelo peso de nenhuma cruz.
Mas há sangue neste corpo, e um coração que bate. Haverá lugares novos para um corpo velho, e sólidas promessas por cumprir. O indigente toma consciência, como dizer: encontra-se desencontrado. E logo o imenso deserto se faz produtivo e útil. Da amarga semente se tira a seiva criadora, se sara a ferida, se recupera o fôlego.
Há sempre a palavra fôlego, para recordar que há futuro. É urgente que a palavra possa respirar. Dar-se à entoação livre. Não há desvalido a quem não valha um pouco de ar fresco, um trago de água que alivie os lábios, uma mão cheia de azeitonas. Que um pedaço de pão nem ao diabo se nega.
Logo nascerá, plena de cuidados, uma madrugada que arrepia de frio e luz. É o movimento lento das cidades a acordar na distância. A aldeia também dá aos motores dos tratores a sua dignidade: de se fazerem lume, depois velocidade, depois trabalho, depois sustento. As máquinas inundam os campos com seus queixumes simbióticos, e a cada pedra, grão de areia, o velho agricultor desculpa-se por ferir a terra.
Ao longe lá vai nascendo, igualmente, o contorno de uma figura enjeitada (preciso de óculos), e é mesmo um homem nu, pés enlameados, ensanguentados, vai cantando enormidades agarrado aos olivais, que diabo, é o zé do povo: preso ao velho agricultor, pai da terra, regressa a casa debaixo do oleado da chuva, aninhado e pobre, e a mãe lá ouve a novidade, aceita justificações, ordena que se tome banho. Este gandulo não aprende.
Mas não era anjo caído, nem diabo vivo, nem desalmado sequer: era só um homem um pouco triste.
Egon Schiele, Grimassierendes Aktselbstbildnis, 1910
(Pegando na ideia, foi fácil esboroá-la, enfarinhada, em pedaços miúdos, para distribuir pelo pessoal. O mesmo havia feito, alguns dias antes, com o amor.)
O meu avô-amor fazia questão de iniciar o almoço de domingo abraçado ao pão quente: como segurando um filho pequeno, à cabeça da mesa orquestrava a faca aguçada e, em gestos amplos, rasgava o pão-amor, dispondo fatias junto ao prato de todos. No gesto teatral, exagerado porque insuflado de amor, residia a alegria de alimentar. Uma vida quase inteira dobrada diante as adversidades de uma vinha dobrada sobre o Douro. O meu avô não falava, comprometido com a meticulosa tarefa. Mas todo o seu corpo dizia, severo: este é o meu corpo.
Depois da refeição, morria-se um pouco no amolecer do escano, a ver passar futuros. A pinga sagrada (sangue quente) corava-lhe as bochechas gordas, e era castiço no seu cambalear em passos curtos, baixo e cheio, piparotando as nossas cabeças de putos, como quem diz: garotada, e rindo amorosamente.
No campo alinhava, pedra sobre pedra, muros e divisórias, e divertia-se a construir pequenos habitáculos, do tamanho de pessoa e meia (do nosso tamanho), que deixava perdidos no meio de nenhures à espera de serem sombra para a merenda no pino do sol.
Há vidas que são rio sem esperança de foz. Estreitamente, entre margens, num sufoco. Esquecido da nascente. Um rio só, soluçando pedras. Perguntadas sobre a natureza do rio, que é também a sua finalidade, águias e falcões do Douro fundo são incapazes de imaginar sequer o luxo fino de uma boca de rio abraçando areais, em sôfregas golfadas de sal.
Paula Rego, Quando Tínhamos uma Casa no Campo, 1961
Padece de um mal deambulatório: explicar-se persistentemente, como se disso dependesse a salvação. Gasta as articulações contra o asfalto do argumento, tropeça em vírgulas e condições e imprevistos, resgata da sina do cansaço a solidez da fome e mergulha, enfim, na solidão da carne. Homens improváveis são figurantes na grande ordem das coisas: mordem autocarros entre palavrões abutres, e vão rangendo no calor do motor, em caldo de suor, até à paragem de casa.
Há males maiores. Como passar-se o reboque na verdade, triturando factos, ruminando ciências, cuspindo gerúndios. O homem providencial chega sempre aonde não é esperado. Impõe-se, porque se vê urgente, e é célere na resolução dos problemas fictícios que inventou. Anti-Sísifo, preenche o caminho com esponjosas pedras, e grita para que todos saibamos: como é pesada a pedra, e que duro o sacrifício de carregá-la. Faz-se à tarefa, acarta o novelo de penas e sobe a escadaria partidária, parando por vezes para limpar o suor da testa com a manga da camisa branca, e o olhar morre, brilhante, no ângulo da câmara oportuna.
De regresso à deambulação: já ninguém escuta o homem improvável, o do argumento, o do discurso. Morreu o tempo da fala, regressou o tempo do grito. As histórias repetem-se, isso é sabido. Menos sabido é que se degradam, são versões requentadas do mesmo jantar, cozinhado por Deus, à mesa da terra.
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