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São isto as ideias.

por Pedro Ramos, em 25.10.20

 

Infinitas são as formas de avançar para o papel, como de avançar para a vida. Um dia novo é página feita a contragosto, chega sem pedir licença, e a tinta lá vai permeando os carreiros como no tempo em que, de sacho em riste, cavava os trilhos da água na herança do poço. É preciso aprender a partir sem plano. O risco é baixo. Apenas um texto sereno, como as ruas antes de haver prédios e o chão antes de haver ruas. Não é o mesmo que partir num barco. Não há intempéries na contemplação. Existem, no limite, sobressaltos. A emoção trava o peito, esquecemo-nos de um batimento, algures perdido na tira de ritmo. A respiração aprofunda-se, e lembramo-nos de que os pensamentos eloquentes estão todos dentro desta caixa de osso. É claro que existe deus. É claro que há demónios e outros absurdos representantes dessa verdade infantil que é o Mal. Há poucas palavras para o amor. O amor tem um arsenal discreto. Não sobrevive em alto mar. O amor é o que acontece nos intervalos do mal, como no tempo em que a minha avó virava costas e eu pegava na mangueira, dirigia-a para o sol e dançava no festival chuvoso da alegria. Estas palavras não significam nada. O seu sentido, se existente, provém do encadeamento escrupuloso e rápido. Estou construindo uma linda escadaria a cada passo dado, e no momento em que o pé pisa o degrau, logo outro nasce. A terra molhada lá se lembra do pé de feijão, que vem dizer adeus à cabeça do húmus, como quando, na escola, experimentávamos a excitação de ver nascer raízes no algodão humedecido. Ou como no dia em que entrei no teatro anatómico, aproximei-me a medo de uma mesa de alumínio, e segurei com as minhas próprias mãos o crânio de um homem morto, com seu conteúdo apropriado, e pensei: são isto as ideias.  

 

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Pieter Claesz, Skull, Lamp, Book, and Pen, 1628.

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publicado às 09:34

Conversas do fogo.

por Pedro Ramos, em 17.10.20

 

Há um fogo que arde meigamente, é calor nos pés de um pobre. Lembro da infância a alegria genuína de ver a lareira crepitar, a excitação da fagulha atrevida que se escapava para o conforto do sofá e deixava uma pequena marca negra depois de se apagar. Anos mais tarde, vi no serviço de psiquiatria o braço purgado de uma rapariga a quem a ponta do cigarro acalmava dores maiores. O vício de sofrer, gerir focos de incêndio. 

Em miúdo era esse fascínio do fogo que me levava a ser, proativamente, o empreendedor da sistemática colocação de madeira na chapa em brasa. A avó criticava o abuso, talvez porque as costas se lhe lembrassem do peso dos toros, dos cepos e restante léxico aldeoso (esta palavra não existe, mas é macia). A criança que eu fui, apaixonada pelo brilho como todas, insistia no remexer da brasa, na potência do fole, sempre em crescente estrangulamento.

O fole gritava o vento que animava o fogo, e eu era a brasa de um lume que ardeu antes de mim, e cuja memória conquistei a pulso na confusão de álbuns fotográficos. Às vezes o fumo refluía para dentro da casa, e eu lá percebia que o vento do mundo era mais forte do que o vento do fole, apesar do trabalho dos meus braços infantis. Tudo isto, claro, são lições do fogo. 

Anos mais tarde, creio que no fatídico 15 de outubro de 2017 (o dia é o símbolo), sei que era domingo, regressava eu de carro, sozinho, da casa-casa para a casa-faculdade, isto é, casa-futuro, quando um mar de labaredas se ergueu nas margens da autoestrada, e veio acompanhando durante talvez meia-hora o meu caminho assustado. 

 

 

Ver desapontada a minha ideia infantil do fogo-manso, simplificação para o calor necessário nas noites transmontanas, e desfazer-se (desintegrar-se) como o mato denso que me rodeava, onde pinheiros se transformavam só na sua escaldante sombra de cinzas, fez-me perceber muitas coisas indizíveis sobre a natureza das coisas.

O mesmo fogo, a mesma chama, o mesmo calor. Todas as mesmas coisas iguais, e no entanto o passado e o futuro, o mal e o bem, mãos dadas, o medo desgraçado de quem se arrepia e chora.

O meu interior-passado feito, num instante de clarividência, o interior de um país-corpo inflamado, agonizando ao abandono, e cada oliveira arrepiada na pele da minha avó-cansada, balançando na varanda-que-já-não-há e contemplando o desespero dos homens-novos, imunes ao fogo. 

Porque a faca não corta o fogo, / não me corta o sangue escrito, e a faca que corta o pão artesanal traz a memória digital do fogo-manso que fez da massa o pão, e outras coisas extraordinárias. Graças a deus me forjei.

 

 

 

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L’Incendie II, ou Le Feu (1944), de Maria Helena Vieira da Silva

 

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publicado às 13:27

Um homem um pouco triste.

por Pedro Ramos, em 06.10.20

 

Para ser grande, despedaça-te. Sê fragmentado, sofrido. Meio anjo sagrado não encontra no conforto da carne mais do que uma pausa para novo desarrumo. Neste chão de terra molhada, nu, digno de riso e indignidade, como se faz com os abutres de hálito cítrico, quando enfim devolvem ao travestido lume das cigarras o seu fel queimado.

Agarrado às oliveiras, desalmado, abana dos ramos curtos o seu desespero: mas nenhuma azeitona cai no chão de sombras, nem no recorte da lua se adivinha providência. Como vim parar aqui, pensa o sujeito. Por que montes desgraçados, campos maltratados, hortos desdenhados me movi. O inferno são os outros, porém todos somos outros dos outros, remexidamente. A algazarra de cães doidos na distância não me orienta no caminho de casa.

Fossem de lâminas luzidias minhas mãos, e gumes meus dedos, e unhas minhas unhas: esgravataria a terra inteira até encontrar a luz, a casa, o caminho. Assim reza o peregrino na sua fé sem santuário, abrigo sem tecto. Anjo caído, mais do que celeste, em si mesmo. Como dizer: encontrado. No seu olhar arrastado, pés dilacerados pelo peso de nenhuma cruz. 

Mas há sangue neste corpo, e um coração que bate. Haverá lugares novos para um corpo velho, e sólidas promessas por cumprir. O indigente toma consciência, como dizer: encontra-se desencontrado. E logo o imenso deserto se faz produtivo e útil. Da amarga semente se tira a seiva criadora, se sara a ferida, se recupera o fôlego. 

Há sempre a palavra fôlego, para recordar que há futuro. É urgente que a palavra possa respirar. Dar-se à entoação livre. Não há desvalido a quem não valha um pouco de ar fresco, um trago de água que alivie os lábios, uma mão cheia de azeitonas. Que um pedaço de pão nem ao diabo se nega. 

Logo nascerá, plena de cuidados, uma madrugada que arrepia de frio e luz. É o movimento lento das cidades a acordar na distância. A aldeia também dá aos motores dos tratores a sua dignidade: de se fazerem lume, depois velocidade, depois trabalho, depois sustento. As máquinas inundam os campos com seus queixumes simbióticos, e a cada pedra, grão de areia, o velho agricultor desculpa-se por ferir a terra.

Ao longe lá vai nascendo, igualmente, o contorno de uma figura enjeitada (preciso de óculos), e é mesmo um homem nu, pés enlameados, ensanguentados, vai cantando enormidades agarrado aos olivais, que diabo, é o zé do povo: preso ao velho agricultor, pai da terra, regressa a casa debaixo do oleado da chuva, aninhado e pobre, e a mãe lá ouve a novidade, aceita justificações, ordena que se tome banho. Este gandulo não aprende.

Mas não era anjo caído, nem diabo vivo, nem desalmado sequer: era só um homem um pouco triste. 

 

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Egon Schiele, Grimassierendes Aktselbstbildnis, 1910

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publicado às 22:47

O eco já não morre cedo.

por Pedro Ramos, em 04.10.20
 
Morrer é apenas uma formalidade. Os trâmites demorados e complexos começam a ser tratados previamente: alguns morrem semanas ou meses antes, outros demoram séculos.
 
Quem morre de doença vai cultivando agregados celulares atípicos, tecido inflamatório, bichos estranhos. O último suspiro é uma rúbrica na última das páginas de um contrato solene que estabelecemos connosco mesmos: a certeza da nossa própria finitude.
 
Quem morre por acidente ou infortúnio também cultivou nas leis do azar o seu substrato produtivo. Os hábitos do álcool, ou da impulsividade, ou da desatenção são sempre fruto de défice ou excesso de educações íntimas, jardins familiares. Há quem saia disparado de casa para ir comprar tabaco a meio da noite, única e simplesmente porque o seu bisavô decidiu, um dia, saltar nu dos píncaros para a ribeira da aldeia, quebrando a espinha. A coragem de fazer o que ainda não foi feito, a ousadia de “provar um ponto”.
 
Há quem tenha começado a morrer séculos antes de nascer, no calor insuportável das fazendas e herdades de outros. Há quem chore com picadas de mosquito, golpes de chicote no lombo nu, campos infinitos de aspeto vibrante na turbulência da lavoura. Mortes ensaiadas milhares de vezes e ritmos sonoros profundos que trazem o sabor da fertilidade adiada. A voz que, como punho, se erga hoje entre palavras de ordem cumpre mais um passo no legado dos mortos anónimos, sem voz nem corpo próprios.
 
A morte também começa dentro, no desequilíbrio neuroquímico, na vertigem de um abandono por entender, em mutações genéticas estocásticas. Entre ondas de sufoco onde braçadas frágeis se desvanecem como espuma, a água atrevidamente convida ao desnudar da alma, a que fiquemos mais um pouco. Pode ser sedutora a voz da morte num jogo de xadrez involuntário, de que fugimos.
 
O eco já não morre cedo quando enfim trazemos no coração pesado a desesperança de futuros impossíveis, abalos sísmicos internos e pernas que tremem como varas verdes. A morte inscrita a ferro quente na memória de gerações, do mesmo modo que os namorados obrigam troncos de árvores a paixonetas simbólicas e golpes de arma branca.

Cortar profundas as veias da terra com um canivete, e ficar observando o sangue negro inundar o imaginário popular da morte, repetido na TV para que ninguém perca a oportunidade de se confrontar. Espelho de água remexido pela ventania ocidental até quebrar a imagem do que somos, dos sonhos que tivemos, da luz que um dia iluminou um caminho.

Mas nenhum Maomé virá abrir as águas. De nenhum deserto fugirá a memória. Seco ficará o corpo na gravidade da queda. E o eco reverberará pelas paredes do universo, montado em quatro cavalos, e morrerá jamais.
 

Maria Helena Vieira da Silva, Transparence, 1978

Maria Helena Vieira da Silva, Transparence, 1978

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publicado às 19:47

Este é o meu corpo.

por Pedro Ramos, em 03.10.20

(Pegando na ideia, foi fácil esboroá-la, enfarinhada, em pedaços miúdos, para distribuir pelo pessoal. O mesmo havia feito, alguns dias antes, com o amor.)

O meu avô-amor fazia questão de iniciar o almoço de domingo abraçado ao pão quente: como segurando um filho pequeno, à cabeça da mesa orquestrava a faca aguçada e, em gestos amplos, rasgava o pão-amor, dispondo fatias junto ao prato de todos. No gesto teatral, exagerado porque insuflado de amor, residia a alegria de alimentar. Uma vida quase inteira dobrada diante as adversidades de uma vinha dobrada sobre o Douro. O meu avô não falava, comprometido com a meticulosa tarefa. Mas todo o seu corpo dizia, severo: este é o meu corpo.

Depois da refeição, morria-se um pouco no amolecer do escano, a ver passar futuros. A pinga sagrada (sangue quente) corava-lhe as bochechas gordas, e era castiço no seu cambalear em passos curtos, baixo e cheio, piparotando as nossas cabeças de putos, como quem diz: garotada, e rindo amorosamente.

No campo alinhava, pedra sobre pedra, muros e divisórias, e divertia-se a construir pequenos habitáculos, do tamanho de pessoa e meia (do nosso tamanho), que deixava perdidos no meio de nenhures à espera de serem sombra para a merenda no pino do sol.

Há vidas que são rio sem esperança de foz. Estreitamente, entre margens, num sufoco. Esquecido da nascente. Um rio só, soluçando pedras. Perguntadas sobre a natureza do rio, que é também a sua finalidade, águias e falcões do Douro fundo são incapazes de imaginar sequer o luxo fino de uma boca de rio abraçando areais, em sôfregas golfadas de sal. 

 

Paula Rego Quando Tinhamos uma Casa no Campo 1961.

Paula Rego, Quando Tínhamos uma Casa no Campo, 1961

 

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publicado às 11:50

O tempo da fala.

por Pedro Ramos, em 02.10.20

 

Padece de um mal deambulatório: explicar-se persistentemente, como se disso dependesse a salvação. Gasta as articulações contra o asfalto do argumento, tropeça em vírgulas e condições e imprevistos, resgata da sina do cansaço a solidez da fome e mergulha, enfim, na solidão da carne. Homens improváveis são figurantes na grande ordem das coisas: mordem autocarros entre palavrões abutres, e vão rangendo no calor do motor, em caldo de suor, até à paragem de casa. 

Há males maiores. Como passar-se o reboque na verdade, triturando factos, ruminando ciências, cuspindo gerúndios. O homem providencial chega sempre aonde não é esperado. Impõe-se, porque se vê urgente, e é célere na resolução dos problemas fictícios que inventou. Anti-Sísifo, preenche o caminho com esponjosas pedras, e grita para que todos saibamos: como é pesada a pedra, e que duro o sacrifício de carregá-la. Faz-se à tarefa, acarta o novelo de penas e sobe a escadaria partidária, parando por vezes para limpar o suor da testa com a manga da camisa branca, e o olhar morre, brilhante, no ângulo da câmara oportuna. 

De regresso à deambulação: já ninguém escuta o homem improvável, o do argumento, o do discurso. Morreu o tempo da fala, regressou o tempo do grito. As histórias repetem-se, isso é sabido. Menos sabido é que se degradam, são versões requentadas do mesmo jantar, cozinhado por Deus, à mesa da terra. 

 

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publicado às 00:05

Mães e árvores.

por Pedro Ramos, em 01.10.20
 
Há uma praia quase deserta que se debruça assombrosamente para o nascer da noite.

Penso que é urgente conhecer os nomes das árvores. É possível saber-se das árvores o nome pela contemplação das folhas. Também é possível conhecer os homens pela contemplação dos filhos. A árvore é plena e viva na antecipação do fruto. Não há motivo nenhum para que não seja possível conhecer as pessoas pela contemplação das mãos.

Os videntes estão sempre certos. Dominam a arte da sedução. Entre baralhos de cartas e o odor a coisas em fumo eles guiam as mães pela raiz do sonho, junto ao desespero. São os vendedores de uma grande mansão inabitada com portadas amplas. O jardim tem um escorrega para as crianças que já não há. As mães dão o seu corpo ao manifesto e os videntes percorrem com dedos finos o sistema límbico das cartas baralhadas.

São espantosas todas as coisas que não suscitam qualquer espanto. As árvores também são assim. Aconteceu um dia que alguém reparasse, ao cortar o tronco de uma árvore, na correlação entre os seus delicadíssimos anéis concêntricos e a sua idade.

A maneira humana de lidar com a ignorância é a de criar uma ciência. A ciência dos anéis das árvores é a dendrocronologia, um método que permite uma datação absoluta de determinados contextos climatéricos. Como as poupanças familiares, um "ano bom" em termos de clima, com bom sol e boa chuva, permite às árvores crescerem mais em altura e em espessura. Os anéis de uma árvore são a sua biografia.

Há dias em que as mães se sentam a uma mesa com os filhos e começam a descascar fruta. É uma homenagem às árvores. O fruto concretiza-se no momento de ser comido. Somos todos alimento de alguma coisa entre o amor e a terra. Há uma curva invisível que vem da distância, muito anterior ao nosso nascimento, que nos guia através de florestas.

Não há silêncio quando uma árvore morre na floresta porque toda a floresta escuta o seu murmúrio profundo. A árvore tombada deixa-nos o seu tronco histórico como um documento. Diz-nos: "esta é a minha vida". É essencial que façamos silêncio.

O silêncio é o calor que acontece quando, em roda da mesa, as crianças, caladíssimas, degustam pedaços de pêra, maçã, uvas numa taça, gomos de laranja. O mesmo calor do tronco morto quando crepita em brasas e solidão, agarrando-se às paredes da chaminé como um desalmado. O silêncio é a mãe descascar-se dia após dia, gomo após gomo, até à semente. Os filhos jamais agradecem o fruto, mas estendem a mão. E na mão está a prova científica do seu amor radical. 
 

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Lawrence J. Schoenberg Collection Oversize LJS 419 - Erbario
 

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publicado às 12:24


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