Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]



Polvo português.

por Pedro Ramos, em 24.11.20

 

É excecional o humano povo português: onde está, procura só a exceção (ignora a regra). É muitas outras coisas. Provavelmente, é feito de ilusões. Toda a máscara é desculpa para inventar a regra, picar o ponto. Excecional é conhecer-se dentro da perdição do mundo. É claro que eu sou só um português recente. Alguns portugueses viveram séculos para nos contar a história. Porém, escolhe cada um a sua história íntima - a que lê e a que constrói. E de histórias é que são feitas as paredes do mundo, histórias de lágrimas que escorrem para cima das mobílias, e apodrecem. Nuvens de tinta atiradas para cima das histórias, uma manobra de evasão. Nascidos em caravelas, idênticos fantasmas. No fundo do mar o cansaço viscoso. Milhões de indizíveis pequenos tentáculos: assim é o polvo português. 

Autoria e outros dados (tags, etc)

publicado às 16:14

Castelos.

por Pedro Ramos, em 15.11.20

 

A mão treme na vertigem da página. Não poderei voltar atrás. As palavras são de ferro que arde, fulgurantes na textura da folha. Há uma nuvem espessa em cima da minha cabeça. Uma nuvem que me envolve. Já não tenho idade para dizer que tenho medo. Um nó na garganta, como se me apertassem o laço com demasiada energia, a minha glote colada à espinha a enfeitar uma árvore de natal. Penso em castelos: castelos de cartas (os sonhos), claras em castelo (a nuvem espessa em cima da minha cabeça). Se pudesse voltar atrás, sei lá o que faria. O passado é a janela que esqueci aberta num dia de chuva. O futuro é regressar a casa. Uma nuvem espessa em cima da minha cabeça: há uma rima aqui, comento ruminando-me. E no entanto a nuvem cresce, impossível, e mancha num grito a página inteira, raios e labaredas até fazer pó da folha, que voa. Um único pedaço de papel: isso é tudo. 

 

DP152.jpg

s/título, Almada Negreiros

Autoria e outros dados (tags, etc)

publicado às 21:20

Regressar a casa.

por Pedro Ramos, em 12.11.20

 

Claro que foi como regressar a casa. Quero dizer: um momento sublime, uma descompressão. O corpo, enfim, abalado na jangada do sucesso, com a fúria pétrea de ter partido e com a sede original de ter chegado. Sair do conforto tomando logo nota da falta que fará, do frio que sentiremos gelar a pele quando, dias adiante, nos vier a saudade trincar os dedos mínimos dos pés, pedir alimento, e farta for a fera que nos maça, num casarão quente. 

Claro que o amor é uma missão. Quero dizer: embarcar na jangada do outro, com a nossa pequena mochila às costas. Meia dúzia de memórias e objetos escolhidos à pressa, antes de sair de casa, e a certeza de voltar logo logo quando o frio apertar e as feras forem famintas.

Mas não voltamos nunca: a casa morreu entretanto, e o gato que trepa as nossas pernas assustadas não nos conhece o gesto. De pêlo eriçado trinca-nos a carne e olha-nos nos olhos, como que perguntando: que carne é esta?

E nenhum novelo de memórias, confusamente amanhado no fundo da gaveta, trará o que perdemos na viagem. Nenhuma solidão mastigada pelas articulações laboriosas da razão recuperará das paredes da casa o calor-amor original, de quando em miúdo a gente se encontrava a trocar presentes no dia em que Jesus nasceu, e a noite inteira era ansiedade feliz. Uma ansiedade irrepetível. O jeito doce dos adultos, que sabiam já nesse tempo como era amarga a partida, e que a pulso haviam erigido uma casa-nova, na esperança de fazerem dela a casa-mãe. Um eterno fracasso anunciado. 

Precisei de ir abraçar-te. Claro que foi como regressar a casa. Penso: nunca deveria ter partido. E o meu corpo reconstrói-se, moroso. Os meus cansaços diluem-se num manto fino, elástico e transparente, os meus cabelos brancos juntam-se a esse tecido etéreo. E pegando nele, apressadamente, a minha mãe coloca-o a lavar. E eu fui eu outra vez. 

 

 

multiform-1948.jpg!Large.jpg

Multiform, Mark Rothko, 1948

Autoria e outros dados (tags, etc)

publicado às 23:08


Mais sobre mim

foto do autor


Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.



Pesquisar

  Pesquisar no Blog

Arquivo

  1. 2022
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2021
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D
  27. 2020
  28. J
  29. F
  30. M
  31. A
  32. M
  33. J
  34. J
  35. A
  36. S
  37. O
  38. N
  39. D