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Aqui há gato. Não pode ser. Tamanha alegria. Uma vida completa. Um certo ar pomposo de se estar à janela, cabelo branco ao vento, uma luminosa lucidez. É alguém que cavalga serenamente por cima da pandemia, do confinamento, da crise, da outra crise, da vida inteira. Uma pessoa livre de pressa. Como se soubesse que a ceifeira se fingiu de esquecida e a deixou para trás na lista inexorável. Parece haver aqui gato, alguma espécie de acordo, um pacto de sangue, uma transação ainda por entender. Investigue-se os sacrifícios, as perdas antigas, as enormes desgraças. Não lhe morreu nenhum filho. Não lhe morreu nenhum cão. Tem plantas, uma quinta, centenas de árvores, ar fresco na cabeça. Tem dias de festa intercalados por longos dias banais, sem qualquer perigo. Dias de se adormecer com a cabeça tombada no marido, à luz da tv, ainda a inalar o odor do chá de camomila que arrefece. Olhando-a assim, ao longe, na janela, é fácil descobrir que lê o jornal ao domingo, vai à missa quando lhe apetece, odeia os telejornais. Acha quase tudo uma idiotice. Fez as suas escolhas. Está em paz.
Funciona assim a cabeça do inveterado pessimista quando vê uma senhora feliz à janela. Incapaz de processar tamanha luz. Poderá acontecer que, num volte-face dramático, também eu tenha o acidente frutuoso da eternidade?
Agora é que vai ser, vais ver. Agora é que vamos confinar este vírus filho da mãe de volta para o buraco escuro de onde nunca devia ter saído. Está tudo planeado. Há gente a tratar do assunto. À curva já lhe doem as costas de saber o quanto vai ter de achatar. Não é pecado falhar, e havemos de falhar vez e vez depois até chegar ao milagre, o acerto final. Uma coisa à filme. Ficar em casa: quão difícil pode ser? Parece que à conta desta pandemia estamos quase no recorde de mortes do Ultramar, ou seja, é uma história sobre os avós que matámos ou dilacerámos a propósito de um orgulho ferido. Um homem deve ser dono da sua terra. Ter um pedaço de campo. Espairecer. Se agora nos pedem um pouco de recato, uma máscara no rosto e um certo distanciamento polido - que só nos faz bem -, então que cumpramos com brio. Agora é que vai ser. Um exército de recibos verdes fechados em laboratórios criou para nós vacinas novas, à noite o sonho da vacina até faz saltar o braço na ponta da seringa, é tudo uma realidade, enfim, moderna. Eu cá não tenho medo de me vacinar. Confio na ciência. Há sempre muitos estudos. A evidência está saindo dos fornos da história como pãezinhos quentes, imparável. Provavelmente teremos de tirar aos jovens o dom da escola para não tirar aos velhos o dom da vida. A sociedade é uma broa de milho que a gente aperta nos dedos gordos até se esboroar amigavelmente, e é uma formiga que o polegar pisa para logo esquecer, divertida. As eleições presidenciais atravessam-se no meio do caminho, uma diversão para a gente espairecer de estar vivo e em fogo. Quem sofre raramente se distrai. Alguém com aspeto duvidoso procura, afastando pedras e arbustos, culpas e culpados. O governo, as pessoas, o excesso de normas, o relaxamento nas regras, o abre e fecha, a testagem, as vacinas. Caricaturas de caricaturas, um assunto muito aborrecido, um tremendo cansaço gélido. Nem posso ir ver o mar. Seria importante que cada pessoa fizesse aquilo que é correto. Assunto fechado.
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