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Corpo de água.

por Pedro Ramos, em 25.02.21

 

Carnage é um corpo de água. Entre rios rápidos, lugares sombrios e pantanosos, lagos tranquilos e imagens de luz, Cave permite-nos aceder ao supremo. Kingdom in the sky. A voz suave, depois a batida constante, a voz como um rugido vindo das profundezas. I’m going to the river where the current rushes by. Sempre a voz desse Nick Cave gutural que conhecemos há séculos e aprendemos a amar com o coração cheio. Uma vida de atropelos e catástrofes que parecem ter fortalecido este homem de 63 anos, figura retilínea e esguia. Toda a música é uma sessão de terapia em que, purgando-se, o protagonista nos oferece o seu peito como saco de pancada. A batida profunda, eletrónica, abafada sugere, em simultâneo, uma viagem pelo espaço sideral e um passeio quente pela savana. Estamos em todo o lado, isto é, estamos num álbum de Nick Cave. Hand of God é mesmo o tema de abertura que nos parece abrir uma fenda no céu acinzentado para nos resgatar uma vez mais, sem pedir nada em troca. Cave é, antes de mais, um génio generoso. Vimos seguindo por aí abaixo, por esse rio abaixo, meio atordoados como seixos sistematicamente envolvidos em lençóis de água. I’m not coming back this time, diz-nos, sem tempo para respirar à tona da cantiga. O poema segue, pronunciado com precisão, e Cave conta-nos histórias. Vemo-nos num terraço espaçoso a ler Flannery O'Connor, tirando apontamentos. It’s only love with a little bit of rain desfaz-nos numa efusão cintilante. É permitido chorar. White Elephant é um hino de hostilidade, um ranger de dentes. Pronto a atacar. I’ll shoot you all for free. Defender o território é a missão desta estátua de absurdo e raiva e imagens de evaporação. A tensão acumula-se para depois darmos as mãos num relaxamento coletivo, um coro de vozes assíncronas, desafinadas, ainda assim numa cantoria despregada e emotiva. There’s a kingdom in the sky, We’re all coming home for a while. Talvez a pacificação do ódio, vista como uma pausa, um regresso a casa, uma bandeira branca que anuncia a paz no lugar do elefante. Arrancamos para Albuquerque com o coração mais tranquilo. Imagens de uma criança que nada entre dois barcos e uma mãe que acena ao longe. We won't get to anywhere, darling. Estamos bem aqui, onde há o calor do amor, onde podemos arriscar o peso sóbrio da saudade. Perdido pelos Lavender Fields, Nick Cave percorre a estrada solitária da sua própria estranheza, das mudanças viscerais que acumulamos pelo caminho. O ocaso aproxima-se. Acumulam-se as referências a seres e objetos pálidos, corpos depostos, uma inocência virginal e nua, irmã da morte. A morte vem pelo som como um envelope de mármore. There’s a madness in her and a madness in me, and together it forms a kind of sanity. Pedaços de poesia que nos atordoam nos meandros da beleza, um grito para dizer: the moon is a girl with the sun in her eyes. Shattered Ground é um colosso comovente de amor longínquo, uma memória viva do amor real, repetitivo e insistente e lúcido. Para fechar, regressamos a uma varanda a rebentar de sol, ajoelhamo-nos com humildade perante a imagem perfeita: I am two hundred pounds of packed ice / Sitting on a chair and in the morning sun. Diluímo-nos no som do piano até sermos só mais uma parte deste corpo de água. 

 

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publicado às 14:00

Mães e aves.

por Pedro Ramos, em 09.02.21

 

Há sempre um lugar onde o medo faz sucumbir os alicerces dos homens, e aninhados escrevem em letra ilegível uma carta às mães distantes. Num buraco qualquer do fim do mundo, onde a vida avança como um filme antigo, entre sépias de vinho e sépias de medo, onde o chão pavimentado da floresta é o sangue de filhos de outros, a caneta impura segue o seu caminho triunfal, o único triunfo. Estou cansado desta merda, mãe. Escreve o soldado. A farda que tresanda, o suor perpétuo, o pânico de fechar os olhos. 

Dizemos: há sempre um regresso a casa. Mas queremos dizer: há sempre um regresso à mãe. Ao lugar germinativo de todas as ideias, os primeiros passos, as centenas de roupinhas alegres, o suspiro da primeira palavra, a amargura envergonhada de dezenas de mães atropelando-se na escadaria da escola primária: o teu primeiro dia, filho, o dia em que imaginei que te largava, mas não largo nunca, sinto os teus dedos no sofrimento da noite, sinto o calor ameno dessa vela que te ilumina a página, e sorrio ao lembrar a tua camisola marcada pelo giz do quadro, os éles, os pês, os quê-de-quá-quá repetidamente desenhados num caderno a linhas finas.

E hoje nada disso importa para lá das palavras e dos sentidos, que se foda toda a matemática, eu quero a minha mãe aqui, nesta floresta endiabrada de vozes mudas, de ecos sem vozes, de sombras apenas. Diz o soldado: eu não posso morrer aqui. Eu tenho de aguentar as minhas forças, a minha garra, o meu sentido visceral, o meu cérebro reptiliano: eu quero morrer longe deste pântano salgado, deste retângulo odiado, desta bandeira que me cravaram na espinha até que esquecesse o que é andar, pensar, ser lúcido. Eu quero ser novamente eu, quero involuir para dentro de mim mesmo, quero encontrar o meu casulo humano, terno. 

No silêncio da noite alta, perdido do mundo, o soldado orienta os seus sonhos ainda pela última réstia do braseiro. Quase finando, consegue-se ainda associar os gritos das aves ao movimento das asas, e esse é o estreito sentido único do momento. A vida inteira encurralada num vale sinistro. De nenhuma ordem me alimentarei, pensa o soldado. Sem nenhum desejo de vida. A mãe dos meus filhos será também a minha mãe, pensa o homem sem nunca admitir. É essa a única herança da guerra, o passado que pintaram glorioso, as conquistas que foram somente perdas. Matei um preto, e para quê? 

Lá longe a mãe aperta contra o peito uma memória esborrachada. Nunca tirámos a justa fotografia. O coração sucumbe um pouco mais, sempre num limite qualquer, afastando barreiras que são os dias, as horas, os minutos. Ninguém pode viver anos numa urgência. Porém, podem as mães. Como aves ansiosas cruzando os céus no breu profundo, gritando o nome dos filhos numa língua morta, agitando a ramagem. A mãe diz: meu filho, onde houver céu eu estarei lá. E o filho quebra num choro lento, as lágrimas apagam a vela, e a noite inunda o universo, como se fosse um abraço. 

 

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Les Planches Courbes III, Paula Rego

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publicado às 19:21


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