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O livro não lido.

por Pedro Ramos, em 26.03.21

 

Estou há mais de quinze anos procurando coragem para ler Morreste-me, a obra de José Luís Peixoto. Comprei o pequeno livro num impulso, e guardei-o religiosamente à espera do momento certo. Lembro-me de abri-lo e ler dois ou três parágrafos antes de sentir o abalo interior que precede a queda. Então recuei. Ficou-me dessas incursões, gravada na memória, uma passagem que reza algo como isto: Orienta-te, rapaz. Eu oriento-me, pai. Não se preocupe. Eu também sei, eu também consigo.

É costume dizer-se que o que define uma verdadeira obra-prima é o conhecimento generalizado do seu enredo, mesmo por quem nunca pegou concretamente no tomo. Todos sabem mais ou menos descrever a trama essencial de Os Maias ou de O Amor de Perdição. A narrativa transcende a contingência física do papel onde surge impressa e é absorvida pela comunidade como parte estruturante da sua história coletiva.

Ao crescer a dimensão do mito, o concreto funde-se, liquefaz-se num produto imaterial a que se chama o símbolo. É desses grandes símbolos que se constrói a vida e se orienta a sociedade: traves-mestras para a edificação do futuro e, através dele, o passado. A figura paterna é um desses pilares.

Por circunstâncias da vida, tenho investigado esse mistério da paternidade por métodos indiretos. Observo atentamente os pais dos outros, os seus comportamentos, como se estudasse animais raros. Valorizo-os, porque sei como foi perder o meu, e entristece-me a incomunicabilidade permanente entre elos familiares, em casas cheias de silêncios. 

O amor é para ser comunicado. Foi também para isso que nasceram as palavras. Os homens veem a sua masculinidade enclausurada numa gaveta de segredos e ausências, proíbem-se de chorar ou de verbalizar afetos, guardam no seu regaço quotidiano a grande moralidade da família. É preciso rasgar esse último véu para que se possam criar novas imagens e papéis dos pais na sociedade.  

Talvez por isso Morreste-me - o tal livro que nunca li -, seja tão dilacerante. O narrador parte da sua biografia para desenhar uma elegia pungente da memória do seu pai morto, de tudo o que ficou por dizer, de todos os espaços de vida contaminados ainda pela sua presença. É uma obra escrita para atravessar a barreira dos vivos e comunicar com o outro lado, o da saudade e da memória. 

É justo e legítimo que se faça uma recomendação literária de algo que nunca se leu, como é justo e legítimo que se recorde quem tem os pais-vivos do seu privilégio discreto. Ao acordar de manhã cedo, alegra-me a perspetiva do sol que ainda não vi, mas que pressinto na outra margem da janela por abrir. Ao confinar-me em casa durante longos meses, aquece-me já um pouco a certeza do abraço de amigos, que ainda não recebi. Aprende-se sempre muito pelo estudo dos contrastes. 

Dos escritos bíblicos até ao ato biológico e concreto do nascimento, o Pai é uma figura-satélite que orienta e contempla tudo à distância. O amor do pai é como uma brisa leve que por vezes abana os arvoredos, para logo se sumir. É necessário abrir as janelas, deixar o vento entrar, desarrumar um pouco a ordem caseira de organizar os pratos, os copos, os sentimentos. Usemos as palavras. Feliz dia a todos os pais. 

 

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Vincent van Gogh, First Steps, after Millet, 1890

 

(Originalmente publicado na edição 3825 do Mensageiro de Bragança, em 25 de março de 2021)

 

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publicado às 21:53

A melhor estratégia é o futuro.

por Pedro Ramos, em 18.03.21

 

Já vivemos mais de um ano de pandemia e a pergunta mais importante mantém-se: como é que podemos motivar os comportamentos da população no sentido de optimizar o balanço entre a atividade social e económica e o contágio?

Os velhos manuais de comunicação de crise dão luzes importantes: a população adere melhor quando a decisão é bem comunicada, de forma que toda a gente entenda; é benéfico que se explique o racional que motivou a decisão, e não apenas a decisão; é proveitoso que o cidadão se sinta integrado e respeitado pela escolha tomada, numa lógica de articulação dialogante, sem rejeições ou conflitos; produz melhores resultados uma comunicação dirigida à comunidade, que nos convença de que as ações propostas beneficiam os nossos amigos, a nossa família, o “outro”.

Ora, não é difícil perceber que estes princípios são postos em causa no momento em que se aponta um bode expiatório. Os culpados alinham-se, vão alternando, numa procura incessante por alguém que carregue nos ombros o peso da desgraça coletiva. Não será, porém, polémico dizer que o “português médio” é um cidadão decente, não quer sofrer, não quer ficar doente, não quer ver ninguém ficar doente, paga os seus impostos, está disposto a ceder alguma da sua liberdade em troca da segurança e da saúde (apenas até um certo ponto, também ele de bom senso). Acima de tudo, a mais portuguesa das atitudes é a de nos julgarmos os únicos cumpridores no meio de uma sociedade de aldrabões e safados. Uma ficção que nos conforta, e bem precisamos de um conforto no meio da tempestade.

Somos também bichos modernos, à espreita de imagens fortes, sugestivas e rápidas que nos impressionem. O nosso limiar coletivo de estimulação tem aumentado, num mundo onde quem mais grita, mais ganha. Por isso cedemos aos relatos chocantes do caos italiano, há um ano, e do nosso próprio caos, em janeiro último.

A ação mobilizadora surge sempre in extremis, na vertigem do colapso dos sistemas de saúde, na iminência da morte de um familiar próximo. “A vizinha está no hospital internada, tem covid” é uma frase que vale mais do que milhões de euros investidos em publicidade institucional.

O que é que podemos aprender daqui? Por um lado, a humildade de assumir que chegámos ao limite das nossas competências possíveis, na contingência dos recursos disponíveis e das estruturas decisórias esclerosadas e viciadas.

Por outro lado, o mais luminoso, a oportunidade monumental de começarmos de imediato a preparar o futuro. Diz o povo que “atrás de uma serra há sempre outra serra”, e atrás desta pandemia rápido chegará uma outra, e outra depois dessa. Por isso arrisco dizer: a melhor gestão possível para a covid-19 será aquela que permitir uma aprendizagem coletiva, enraizada, consensual sobre a resposta às futuras crises de saúde pública.

É urgente uma síntese multidisciplinar e precisa sobre tudo o que de eficaz e de menos eficaz aconteceu. Uma fotografia viva, que perdure para lá da memória da nossa geração, e que diga aos nossos netos onde é que os avós se reuniam, que espaços produziram mais contágios, que máscaras usavam, o que temiam, que sonhos viram ser-lhes roubados, que humanidade floresceu depois da sua mais velha humanidade.

A memória é o verdadeiro desafio da nossa década.

 

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publicado às 20:33

A travessia.

por Pedro Ramos, em 16.03.21

 

Se removermos da equação os burgueses mais antigos (que têm instalações próprias e funcionários dedicados ao arquivamento e remoção dos lixos), os brutamontes mal-educados (que atiram janela fora, sem vergonhas, os seus resíduos domésticos) e os ecologistas radicais (aqueles que, usando máquinas de compostagem, lá convertem a porcaria em adubo), podemos concordar que toda a gente normal leva o seu lixo à rua.

Foi com esse intuito que avancei nesse final de tarde passeio fora, atravessei a rua até ao caixote do lado de lá, abri a tampa, vigorosamente depositei o saco (o vigor varia), e pus-me a regressar ao lado de cá (então lado de lá, o lado varia). A estrada na pequena cidade é habitação do viajante pontual, cujo ruído se escuta de casa logo para se ignorar a seguir, porque é ligeiro e espaçado, sem dramas. Mais adiante existe uma passadeira, a talvez uns cinquenta metros, portanto, muito longe. Cheio de pressa, abeiro-me da estrada e espero a minha vez: primeiro, um carro idoso vem lentamente na sua respiração fumegante, permite-se a troca de olhares casual com o idoso condutor, um esboço de sorriso cordial, uma espécie de humanidade; depois, já com dois pés no meio da via, oiço gargarejar violento um motor moderno, que me passa a meio metro dos olhos com a velocidade de um alfa pendular. 

Estou seguro, pensei. O coração, no entanto, meio a troca-passo, ainda com o reverberar dos pistões, essa tralha. É rara tamanha agitação numa terra onde os carros se calam para ouvir cantar os pássaros. Reabilito a respiração e preparo-me para a travessia, quando novo som perturba o entardecer: uma campainha de bicicleta, daquelas acionadas pela própria força muscular do portador, na compressão dos seus finos dedos enluvados, todo o homem jovem revestido de silicones ou poliéster, essa tralha. Olhando o horizonte alcatroado vejo uma enorme turma de animados desportistas, todos coloridos de amarelos e vermelhos ridículos. Espero largos segundos pela sua passagem, depois confirmo o silêncio, oiço um pequeno passarinho, avanço. Ali ao lado a passadeira virgem, luzidia. Avanço. 

Acordei feito múmia engessada, não sei bem se no dia seguinte, com três fracturas expostas, cinco costelas partidas e uma rutura de ligamentos do joelho. Pelos vistos escapou-me do campo de visão um moderno carro elétrico, silencioso, respeitador de pássaros. Filho da puta, pensei. 

Levaram-me a casa numa ambulância. Tratamento presidencial, sem queixas. Um homem paga os seus impostos, é certo. Fiquei mais duas semanas engessado, a viver a conta-gotas da generosidade das enfermeiras ao domicílio. Ninguém para me levar o lixo. Uma profunda tristeza, um trinar de pássaros. 

Comprei um compostor. 

 

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publicado às 16:14

O confinamento interior.

por Pedro Ramos, em 15.03.21

 

Há um princípio fundamental da Saúde Pública que podemos resumir assim: “Quando funciona, nada acontece.” Esta verdade essencial leva a que o trabalho quotidiano dos profissionais da vigilância epidemiológica, que diariamente acompanham a evolução das doenças infecciosas no nosso país, esteja invisível ao olhar comum. Porém, eles cá estão, cumprindo a sua missão patriótica, infelizmente com um défice de recursos significativo.

Um dos pilares da estratégia de combate à pandemia assenta no famoso confinamento. Faz sentido: um vírus que se transmite principalmente pelo contacto entre pessoas, resolve-se pelo seu afastamento.

O ser humano, que é um ser social, resiste a isolar-se. Está no nosso ADN que a ação coletiva é benéfica, libertamos neurotransmissores da felicidade quando abraçamos alguém, utilizamos a linguagem do corpo com mais naturalidade do que a difícil e escorregadia linguagem escrita e falada.

Com a restrição das atividades produtivas e laborais, o acesso limitado ao ensino presencial, a conflitualidade entre a vida laboral online e a vida pessoal, e a diluição dos horários e rotinas, o resultado é um agravamento profundo das desigualdades. Os mais ricos passam por esta crise razoavelmente intocados, enquanto os mais pobres desabam e se fragilizam ainda mais.

As terras do interior do país foram, no verão passado - e sê-lo-ão novamente no verão deste ano -, destino preferencial para os mais privilegiados das urbes litorais, que procuram um lugar desempoeirado e um pouco mais livre para celebrarem o seu confinamento glorificado. O turismo regional agradece, e com razão, mas convém não tirar do escopo de análise a fina ironia de ver o nosso interior desertificado e abandonado pelo poder central ser, na altura da crise aguda, refúgio romântico para os ricos de Lisboa.

Nada disto é novo. A poesia clarividente de Cesário Verde, filho de comerciantes abastados e vitimado ainda novo pela tuberculose, explica-nos a psique paranóica da capital derrotada pela peste em meados do século XIX. Recordemos um excerto do seu poema “Nós”: “Foi quando em dois verões, seguidamente, a Febre / E a Cólera também andaram na cidade, / Que esta população, com um terror de lebre, / Fugiu da capital como da tempestade.”

O campo é, de facto, uma medida de salubridade. A qualidade do ar, por exemplo, é um privilégio que raramente lembramos, mesmo quando a ciência nos explica que, anualmente, morrem 4.2 milhões de pessoas em todo o mundo por patologias associadas à poluição atmosférica.

Um olhar de esperança sobre os eventos da pandemia pode levar-nos a pensar que, com sorte e astúcia, talvez possa vir a nascer de novo o interesse do país pelo seu interior. Um interior para o qual olhamos só em época de incêndios, com um baixo peso no sistema de representação política, com uma sempre adiada descentralização de competências. Podemos sonhar com um futuro próximo em que o valor da vida bucólica, dos idosos, dos campos e das serras, regresse ao imaginário nacional como oportunidade de investimento e crescimento. Escreveu Cesário sobre o seu pai: “Ora, meu pai, depois das nossas vidas salvas / (Até então nós só tivéramos sarampo). / Tanto nos viu crescer entre uns montões de malvas / Que ele ganhou por isso um grande amor ao campo!”.

Afinal de contas, nem todos os confinamentos são iguais. Se é para encerrar temporariamente as nossas vidas sociais, ao menos que tenhamos vistas largas e ar puro.

 

(Originalmente publicado na edição 3821 do Mensageiro de Bragança, em 25 de fevereiro de 2021)

 

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publicado às 21:04

O vício da queda.

por Pedro Ramos, em 13.03.21

 

A tragédia é a perda do amor, e a maior das tragédias vem de amar profundamente o estado de ser triste. O rigor permanente das imagens, cirúrgicas e escorreitas, austeras, impõe na narrativa a severidade do seu protagonista. Estóico perante a dor, depende da dor para se reconhecer estóico. Apropria-se da dor da morte alheia quando o seu próprio drama pessoal termina, a ponto de visitar o pai de uma cliente na sua morada final, carregando flores. São quebradas todas as barreiras profissionais em nome de uma vontade desesperada de chorar, de dramatizar, de sentir. A manhã junto à esposa regressada, sã e salva; a constante presença do mar, do sol intenso, da atividade física, da vitalidade; tudo isto é contrário à vertigem de quem se apaixonou pela antrolopogia da tragédia, de quem se viciou na mordedura rasteira do santuário de Crise. 

"Esqueci-me de quão bom isto é", comenta em fundo negro, com a gritaria a capella habitual, ao induzir da mais dramática forma o choro, de que jura depender a sua fisiologia. O corpo, que se movimenta roboticamente, parece uma máquina de chorar. O pai de família severo desconstrói os seus papéis sociais, a sua ficção de género, e despe-se até um puto mimado, irritado pela privação do bolo de laranja da vizinha. 

Sem pôr de parte o fato negro, industrialmente engomado, o advogado (Yannis Drakopoulos) agarra-se à maravilhosa cadela como um desalmado durante toda a trama, psicologizando a sua narrativa. No desespero final da sua irrelevância, não hesita em converter o amor em perda, apenas para escrever uma nova tragédia.  Um filme que só na última curva abandona a estética ampla, moderna, a rebentar de sol, para se desprender num pranto de chuva e sangue.

A felicidade voltará para assombrar-nos, ressuscitada do Egeu profundo. 

 

imagem_2021-03-13_193339.png

Oiktos (2018), Babis Makridis

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publicado às 19:22

2020: o ano viral.

por Pedro Ramos, em 07.03.21

 

O ser humano é um bicho estranho. Evoluído na sua travessia filogenética, acelerado cada dia um pouco mais, assemelha-se por vezes a um corredor exausto, preso a uma passadeira de ginásio que não pára nunca, e cuja velocidade exponencialmente cresce até nos rebentar o miocárdio. 

Esta civilização moderna que nos parece imposta, amiúde a contragosto, foi na verdade construída a muito custo pelas nossas próprias mãos: artistas geniais, donos da sua própria obra, que hoje aberrantemente a alteram, exageram e destroem, sem dó nem piedade, esquecendo a vida antes da obra e o esforço nela investido. Procuramos um sei-lá-o-quê de novo, sempre diferente, talvez capaz de nos convencer de que estamos aptos ao desafio da superação. 

Um dos sinais capitais da nossa ambiguidade intrínseca é o amor pela intencionalidade. A construção de uma lógica para o que acontece, sob a forma de uma explicação racional, é que nos alimenta inteiramente a fome de progresso. Desabituámo-nos da sombra cavernosa da nossa humanidade visceral, da nossa aleatória e caótica felicidade genética. Pequeníssimos, organizamos papelada, tiramos fotocópias, elegemos representantes: e nesta burocracia procuramos o amor que perdemos no dia em que abandonámos a natureza humana. 

Também a medicina pode fazer-se percorrendo um desses dois trilhos fundamentais. O caminho evidente dos protocolos clínicos e dos guiões formais   permite-nos, com eficácia comprovada, acompanhar os utentes, orientá-los ao longo do tempo e socorrê-los diante o abismo das maleitas e das dores. 

Muito antes da medicina está a saúde. É o segundo caminho, o tal caminho sinuoso, cavernoso e visceral, incerto. Como num passeio pela floresta, pode bem acontecer que alguns quilómetros volvidos tenhamos de regressar ao ponto de partida, virar à esquerda onde antes tínhamos seguido à direita, brandir uma catana, às cegas, no silêncio das copas densas, e fazer novas escolhas. 

A pandemia do nosso ano 2020 é uma fratura exposta da qual, a grave custo, recuperaremos devagar nos próximos quatro ou cinco anos. Já se escreveram artigos científicos, páginas de jornal e posts de facebook suficientes para uma biblioteca de Alexandria dedicada ao tema.

A lição que 2020 produz pode resumir-se de forma simples: tudo depende de tudo. A interdependência crescente dos mercados, dos países, das economias, das pessoas, das relações: essa é que é a grande marca do futuro que este annus horribilis deixará na memória dos astutos, operando por mecanismos de oposição. 

Senão vejamos: o vírus desconhecido das terras distantes da Ásia veio contaminar e fazer adoecer a vizinha da minha avó transmontana, numa terra sem comboios nem autocarros nem aviões. Uma terrinha com meia centena de pessoas, onde não entrou ninguém estrangeiro, infectada por um vírus congeminado algures na promiscuidade genética da velha família dos coronavírus, em grutas de sítios que ninguém desta aldeia visitou ou visitará. E, no entanto, são reais e palpáveis a tosse, a febre, os pulmões desfeitos, a dispneia. Um vírus globalizado, transportado, incubado a um ritmo alucinante. 

A resposta clássica da saúde pública fundamenta-se na mecânica elementar do vírus: separando as pessoas, aumentando a sua distância, podemos congelar o contágio e abortar a transmissão. Tudo depende de tudo. A genética do vírus, a mobilidade dos mamíferos que o transportaram, o contacto dos seres humanos com esses animais, a amálgama humana universal. 

Alguns – cada vez mais -, poderão dizer que a solução é o isolamento: se tudo depende de tudo, então a distância do outro é a proteção do mal que este nos pode trazer. Esquecem, contudo, que a nossa riqueza humana, cultural, social e económica deriva justamente de séculos de partilha e compromisso, de cooperação e disrupção cíclica, de um diálogo sistemático entre o “nós” e o “eles” ao ponto de se confundirem. 

Quando Virchow proclamou que “a medicina é uma ciência social e a política não é mais do que medicina em larga escala”, estava a dizer tudo o que um médico – que é antes de mais um cidadão -, deve aprender. A técnica é apenas a base operacional de um método que não pode deixar de ver a medicina como uma ciência social, a favor das pessoas e que emana das suas circunstâncias culturais. 

O “ano viral” tem, assim, uma dupla perspetiva: o mundo do vírus (biológico, epidemiológico, clínico, patológico) e o mundo que reage ao vírus (antropológico, sociológico, comunicacional), a que gosto de chamar o “contra-vírus”. A “má-informação” desestabiliza os fundamentos da credibilidade científica. A desinformação aproveita-se disso e põe em ação um plano de mitificação da doença e desvitalização da realidade. Quero dizer: a distância entre a realidade da doença e a comunicação acerca da doença é que permite um desnível escorregadio em que tropeçamos. Tudo depende de tudo. A desinformação é irmã do populismo, de que muito beneficiam certas correntes políticas. Alimentam-se dela porque se funda na não-crença. Não acreditar é um negacionismo, e negar uma realidade é tirar-lhe a dolência, é fazê-la líquida e mais acomodável dentro dos arquivos do espírito. 

Procuro clarificar: o negacionismo científico e o populismo político não são defeitos inerentes ao negacionista ou ao populista. São sintomas de uma resposta inflamatória à realidade, que é a resposta de negação. São produto da ausência de recursos para aceitar, integrar e desencadear mecanismos de reação a uma verdade dolorosa e ameaçadora. Assim, podemos concluir que a chave para esta segunda face da moeda se encontra na educação para a saúde e na comunicação em saúde, que com liberdade podemos resumir ao conceito de Literacia. 

A Literacia é que nos permite abrir e fechar portas, gerir a nossa vida, arrumar as gavetas da mente, criar opções e escolher caminhos. Permite-nos encontrar a tal intencionalidade profunda que está na base da felicidade do ser humano, o mais estranho dos bichos. 

Tudo depende de tudo. Olhemos para tudo. Cuidemos de tudo. Não há saúde sem medicina, nem deve existir medicina sem saúde. Não há saúde sem felicidade, nem felicidade sem intencionalidade, nem intencionalidade sem literacia. A única solução para os problemas da humanidade é sempre e só mais humanidade. 

 

(Originalmente publicado aqui, em janeiro de 2021)

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publicado às 19:09


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