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Sobre lobos e muros.

por Pedro Ramos, em 29.05.21

 

Há muito, muito tempo eram os lobos a principal ameaça. Por vezes vinham em matilhas poderosas como embaixadores emproados, desfilando pelos descampados, atordoando galinhas com a sua retórica canina. Outras vezes vinham isolados, lobos solitários, como amoladores de facas, ansiosos por aguçar o dente. Lá para os lados de Porto de Mós os camponeses inventaram os muros de pedra seca, desconcertantemente simples. Uma pedra é uma pedra, e pedra sobre pedra, sem adereços fúteis, se faz o muro. O muro protege as galinhas e o gado da mandíbula musculada do lobo, que ao deparar-se com um amontoado cirúrgico de calhaus decide dar meia volta e ir perorar noutras paragens. A última camada de pedra define a função do muro: espessa e pontiaguda, faz-se arpão hirto na direção do potencial predador nocturno; árida e redondinha, como seixos roliços do fundo do rio, faz-se construção plástica, reversível, suscetível de se esboroar como miolo de pão ou miolo de borracha na linha de um lápis.


Outra inovação engenhosa foi a porta para o gato (ou para o cão). Essa pequena abertura de fluxo unidirecional ou bidirecional, colocada precisamente na porta da habitação, para possibilitar o livre trânsito dos bichos domésticos. Começámos a domesticar os gatos há talvez dez mil anos, e desde então os buracos nas paredes, as fendas na madeira, cada pequena abertura foi usada pelos seletos amigos para usufruto da sua liberdade.


Existe ainda a lenda urbana de que terá sido Isaac Newton, pai das leis da gravidade, o inventor da pet door. Reza a história que o afamado génio seria dono de cães e gatos e teria congeminado um sistema de porta dupla: uma porta maior para a passagem do cão, uma porta menor para a passagem do gato. A nota artística está, claro, na inocência de ter ignorado que o gato seria igualmente capaz de passar pela abertura mais larga. Se for verdade, fica-nos a consolação de saber que até o presidente da austera Royal Society se arrogava o direito ao engano e à tolice. Se for mito, confirma-se a nossa comum e mortal necessidade dessa consolação.


No tempo em que os criadores de gado coçavam a mioleira até achar forma de proteger os animais dos predadores, como no tempo em que os humanos decidiram que o cão podia comer os restos do jantar junto à fogueira: aos pequenos atos de génio, gestão das coisas banais da vida toda, ainda não chamávamos “sustentabilidade”. Do mesmo modo as maçãs caíam nos princípios outonais, alheias a equações.


O que há de comum a ambas as construções é serem uma expressão de autonomia, divisórias maleáveis e fluídas que convidam ao seu próprio afrouxamento, que estimulam a transitoriedade de espaços, de lugares. E, apesar disso, são firmes na hora da firmeza: fazem lembrar a coluna vertebral do proletário desgraçado na canção do Chico, que se não tivesse morrido na dor da “construção” haveria de se dobrar ao final do dia para recolher nos braços rasgados o amor de um filho. Se não são os versos resumo dos muros de Porto de Mós: tijolo com tijolo num desenho mágico, num desenho lógico.


Há ainda, no acabamento do texto, uma ironia espessa, feita de meia dúzia de pedras colhidas do chão, tal e qual flores silvestres na manhã da espiga: é que talvez se possa atribuir a raiva espumosa do lobo, ameaçado e (por isso) ameaçador, à infelicidade de ver o cão comum, seu primo filogenético íntimo, bem tratado com passadeiras vermelhas e “pet doors” criativas, num caminho sem espinhos. Ou vice-versa. É uma outra vicissitude diplomática.

 

(Originalmente publicado na edição 3834 do Mensageiro de Bragança, em 27 de maio de 2021)

 

 

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publicado às 15:43

Devo ir.

por Pedro Ramos, em 26.05.21

 

Naquela tarde não passou nenhuma caravana. Os cães ladraram, ainda assim. Força do hábito, em matilha, na berma da estrada, acabrunhados pela força de correntes metálicas, exageradamente estenosando os seus pescoços ralos. Uma árvore que cai na floresta, virgem de olhos e ouvidos para analisá-la. O latido ecoa pelo alcatrão, percorre a curva sinistra, perde-se no matagal. Há uma espécie de cabana urbana onde camionistas param para urinar ou para sintonizar os rádios, com rostos equívocos de estupidez. Neste lugar nunca anoitece. É sempre um fim de tarde morno, uma atmosfera que assenta como se fosse uma espuma densa. A única brisa é a dos camiões apressados, alimentados por centenas de cavalos esfaimados. Também um vento pestilento ocorre na abertura das mandíbulas dos cães, cuspindo sons com restos de ossos, metálicos e secos.

Som de passos. Surge uma jovem mulher desarrumada, com um cabelo farto e negro, um olhar cheio de abismos. Traz uma mochila expressivamente grande, para significar que vem de longe. Num ápice se livra da mochila, atira-a com energia para um caixote do lixo. O som abafado, liquefeito, sugere memórias de água. Os cães animam-se, absurdamente loucos. As botas espessas marcam no chão de fogo um compasso castiço. Anima-se também uma banda de loucos pardais, vindos sei lá de onde. A mulher traz um casaco de cabedal muito rafado e uma atitude emancipada e ansiosa, qual personagem de um Varda. É uma ansiedade que não se exprime, mas transpira. O seu rosto é neutro, assustador de uma coragem alta. Aproxima-se dos cães, súbito disciplinados, e afaga longamente cada um deles, ciente das vantagens de um lugar de tarde eterna. Fica-se por ali. Pondera soltar os cães. Vai ficando por ali. Ao longe o som de mais um camião. Pensa: devo ir. Aproxima-se da estrada, levanta o seu braço, depois o seu dedo polegar, positivamente. Força-se a um sorriso exausto. O camião abranda numa chiadeira desproporcional, acaba por se imobilizar, a porta abre-se, um porco suado e meigo diz umas palavras que a mulher não ouve. Pensa: devo ir. E assim foi. 

 

Captura de ecrã 2021-05-26, às 16.44.27.pngSans toit ni loi (1985), Agnès Varda



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publicado às 16:37

Jardineiros de Abril.

por Pedro Ramos, em 06.05.21

 

Sento-me numa cadeira pacífica para escrever o texto. É Abril, a passarada esvoaça enlouquecida pelo quintal e a terra ainda se recorda, empapada, da chuva da noite anterior. Todo o horizonte são árvores e prédios, e escolhem-se as primeiras para erigir a imagem da crónica.

25 de Abril foi também uma noite de aguaceiros radicais caindo, como oferta divina, no solo árido e infértil da ditadura. Isto é, Abril foi uma possibilidade luminosa. A terra queimada lá aceitou, a contragosto, a semente do devir. A semente germinou, dolorosa, em meia dúzia de células verdes. E daí se fez Portugal, o novo, com muitos frutos maravilhosos: a saúde, a educação, a segurança social, a abertura ao exterior, o futuro.

Porém, o passar das décadas trouxe essa liberdade fresca até uma meia-idade complicada. Com 47 anos feitos por estes dias, pode dizer-se com ironia que a revolução pondera fazer-se à estrada numa motorizada topo de gama, e nunca mais voltar. Cresce uma ansiedade democrática da qual se alimentam as ervas daninhas obscuras da nossa democracia fresca. Não tem sido um caminho fácil: o final do século, rico e produtivo, conduziu a anos de grande seca e grande fome, como na primeira metade da década passada. Os espinhos da corrupção estão cravados firmemente no tronco espesso desta frondosa árvore. Mas nem por isso deixam de aqui cantar os pássaros e arquitetar os seus ninhos, de aqui virem namorar os jovens casais depois do fim das aulas, quando o sol enternece em tons róseos.

Alguns dirão que é preciso arrancar a árvore: aspergir herbicidas violentos nas suas raízes, de molde a que tudo se destrua. Dizem, aos berros, que está condenada a árvore à tortura dos tais espinhos. No entanto, a mão carinhosa de um jardineiro rapidamente livraria desses corpos estranhos as rugosidades do tronco. E mesmo os tais destruidores, que se excitam na agitação de químicos pestilentos, paradoxalmente vêm, durante a noite, escondidos, beber da frescura que à luz do sol, incoerentes, condenam e maldizem.

Alguns outros dirão que a liberdade é só o direito de se poder plantar a árvore. Quem quiser, planta; quem não quiser, não planta. Ignoram, infelizmente, o valor da sombra onde a brisa arrefece e consola os desgraçados sem nada para beber, onde velhas cansadas param um pouco para reganhar o fôlego, ou os ramos grossos onde pássaros planeiam os seus futuros voos.

O 25 de Abril faz 47 anos. O dia inicial foi uma noite de chuva. A possibilidade de uma raiz. Não podemos permitir que se faça desta semente edificada uma memória oca. É preciso lavrar com amor esta ideia de futuro, cumprir o imperativo moral de tornar real o sonho. Construir comunidade em torno deste altar sagrado, partilhar os frutos, passear os cães, alegrar os filhos. Que nenhum espinho possa ferir a seiva delicada do seu ventre produtivo. Sejamos jardineiros de Abril.

 

(Originalmente publicado na edição 3830 do Mensageiro de Bragança, em 29 de abril de 2021)

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publicado às 15:04


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