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O Sísifo do Marão.

por Pedro Ramos, em 24.06.21

 

Quem atravessa o Marão pelo túnel percebe a imagem: a dada altura, lá no fundo, há uma luz real, superior às luzes elétricas do percurso, que é a luz solar incrível do enclave montanhoso do outro lado. As primeiras referências à “luz ao fundo do túnel”, bastante incertas, datam de 1880. Provavelmente inspirado por outros túneis em outros mundos, alguém ligou a expressão a um sentimento de esperança, uma hipótese de ver uma situação de sofrimento ou tormenta terminar, a resolução para um drama qualquer.

Algumas pessoas com experiências de quase-morte referem que no limiar da vida se vislumbra uma intensa luz branca, numa aproximação lenta. Um artigo da “Scientific America” de junho de 2020, por Christof Koch, desmistifica o conceito de experiência de quase-morte, lembrando que estes são eventos relativamente frequentes, associados a contextos clínicos de ameaça aguda à vida do doente, como em traumas e infeções graves ou enfartes do miocárdio. Estas situações variam bastante em qualidade: se algumas pessoas relatam ver a vida a passar-lhes diante dos olhos, em revista, ou se sentem inundadas num banho de luz branca e terna, ou narram ainda uma espécie de levitação doce, algumas outras recordam sensações de pânico, asfixia, profundo medo. De todo o modo, estas pessoas ficam marcadas para o resto das suas vidas e orientam a sua relação com os outros, com a espiritualidade ou com a existência de formas íntimas e profundas. Transversal a todas é a sensação de que aquele momento final, aquela vertigem sobre um precipício, teve uma textura de realidade superior à “realidade normal”. Como a luz solar depois de quilómetros de luzes elétricas, frias e sempre iguais.

Regressemos ao mundo tangível. O túnel do Marão não é a única forma de chegar de Amarante a Vila Real. Há quem prefira ir pelo denteado da serra, pelos arrepios dos pinheiros, contornando as curvas da velha IP4. Em outros tempos parava-se na bomba de gasolina lá no alto para tomar um cafezinho ou comprar batatas fritas. É ainda uma boa alternativa para quem queira poupar algum dinheiro em portagens. Há não muitos anos, o drama do IP4 era “apanhar um camião”: quem viesse do Porto para Bragança numa sexta-feira à tarde, ansioso pela chegada ao conforto familiar, muitas vezes lá teria de pegar no telefone, esperar uma clareira de rede, e explicar que iria demorar, porque, precisamente, “apanhara um camião”.

O pesado camião subindo a serra íngreme com os motores aos berros poderia fazer lembrar a imagem de um Sísifo mitológico, muito humano, na sua repetição eterna de um esforço sofrido, carregando a rocha até ao topo da montanha, apenas para a ver cair novamente, e assim sempre num ciclo interminável. Recordemos que Sísifo foi o mais astuto dos mortais, brincando com a morte, tentando enganá-la, agrilhoando-a até, no ato supremo de ousadia. É possível que nessas aventuras se sentisse eterno, poderoso e invencível. E Camus tenta convencer-nos, no “Mito de Sísifo”, de que este é o dono das suas escolhas e argumenta que “é preciso imaginar Sísifo feliz”.

Vivemos um momento de escolha. A pandemia que nos assola há quase um ano e meio aproxima-se do fim, com a ajuda da imunidade que as vacinas produzem. Muitos dos nossos irmãos e irmãs morreram pelo caminho. Podemos escolher honrar a sua memória: continuemos firmes, em linha reta, em direção à luz. Se tomarmos o caminho mais longo, por mais bela que seja a paisagem ou feliz o exercício, a pedra poderá cair-nos novamente das mãos.

 

Gustave_Doré_-_Dante_Alighieri_-_Inferno_-_PlateAvaros e pródigos penam no Quarto Círculo do Inferno, Gustave Doré, 1861

 

(Originalmente publicado na edição 3838 do Mensageiro de Bragança, em 24 de junho de 2021)

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publicado às 21:31

Fixa na infância o teu olhar sagrado.

por Pedro Ramos, em 10.06.21

 

Fixa na infância o teu olhar sagrado, a ver se abrimos braços infantis junto ao escorrega, o teu pai como certeza, agarrado ao corrimão com as âncoras da sua esperança. Luminoso espaço onde as amarras são nenúfares doces, onde o peso é apenas a ideia do chão. Nenhum homem vagaroso circunda o parque, nenhuma antiga mãe o contempla, desfeita de saudades em seu ventre oco, nenhuma noite chegará depois do tropeção, dos joelhos esfolados, da choradeira animada: vejam todos, sou criança e sofro, o pai ainda cá está, agarrado também ao corrimão do baloiço, vai e vem do meu filho que já não chora, a tarde entardecendo, a noite tardando, uma brisa sempre cheia de respirações e silêncios. Escorre do joelho rasgado algum sangue que a criança recolhe na ponta do dedo, leva à boca para provar, assusta-se no travo metálico: este é o seu sangue, o seu olhar sagrado, a ver se abrimos braços infantis junto ao escorrega, braços fortes de pai que nunca morre, pequenas mãos de luz estendidas como velas na direção do carro, o apertar do cinto, todo o conforto. Uma casa para onde regressar, e um pai nela, e a noite final rodeando a vedação, infiltrando-se nos poros da madeira, roendo as maçanetas das portas, cuspindo pelos buracos das fechaduras, desarrumando os pratos e os copos no lava-loiça, trocando as escovas de dentes, os sons e as ideias na cabeça de um pai confuso num novelo de trabalho, listas de compras e dívidas. O miúdo chora noite dentro, queixa-se das dores de crescer, mas a sua flor brota ainda assim, todos os dias um pouco mais, cresce sofrendo como as jóias puras de brilho. Arranca no escuro a crosta inflamada dos joelhos em chama e a luz da dor ilumina o caminho de fogo, como Moisés abre o seu trilho santo desviando contrariedades, sem que ninguém se aperceba, sem que ninguém registe em espessos tomos a sua evolução feliz.

 

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publicado às 14:46


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