(Originalmente publicado na edição 3851 do Mensageiro de Bragança, em 23 de setembro de 2021)
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de bisturi em riste vieste abrir-me o velho vale
dizendo: "é preciso que expurgues"
tu é que conhecias este monstro suculento
abafado nas adegas da sombra
cujo chão percorre essa serpente
muito verde de regar jardins
Corria o ano de 2014 quando decidi aventurar-me na escrita de um pequeno ensaio. O tema era a celebração dos 40 anos do 25 de abril, com apontamentos sobre o processo democrático e de integração europeia. Isto depois de um apelo em forma de concurso, promovido pela Antena 1/RTP, que vi publicitado algures na internet.
Lembro-me bem do momento em que me atirei à escrita - “atirar-me” é justamente o termo -, e lembro também a incredulidade que senti quando fui contactado por uma jornalista, que me comunicou ter sido um dos três vencedores.
Tudo isto parecerá bastante corriqueiro e autocentrado. Há um bom motivo. É que um dos júris do concurso, a par da maestrina Joana Carneiro, do general Ramalho Eanes e do professor Guilherme D’Oliveira Martins, era o nosso Presidente Sampaio.
A apresentação pública do ensaio decorreu na reitoria da Universidade de Lisboa, numa conversa entre o Presidente e este que aqui se assina. Assim, subitamente, um puto macedense à conversa com uma das figuras mais queridas do povo português. Foram tempos de enorme ansiedade, alegria e sentido de responsabilidade.
Chegado ao local, vi ao longe o Presidente. A sua presença ganhava uma mística, não sei se pela sua aparente debilidade física, se pelo seu olhar muito humano e humedecido. Ao meu aperto de mão hesitante e fraco, ele contrapôs uma mão forte e segura, sem qualquer sobranceria ou violência. Muito se pode dizer das pessoas pelo estudo do seu aperto de mão.
Depois do choque inicial, lá começámos o processo de desenrolar esse nó do desconhecimento, de nos aproximarmos, mesmo que circunstancialmente, para aquela hora de conversa.
A impressão mais profunda que Sampaio deixou em mim foi a de alguém que realmente queria ouvir o que tinham para lhe dizer. Naquela situação, por mero acaso, seria o que eu teria para dizer, mas era universal, visceral o seu sentido de escuta atenta. Depois de ouvir e assimilar, permitia-se uns segundos de silêncio, em que as palavras assentavam no espaço como a farinha depois da peneira, leves e luminosas. Era este o seu exame do mundo, do argumento, da razão.
Por fim, a voz. Forte e decidida, límpida e muito clara, no rastilho de uma vida inteira construída pela mão do pensamento e da oratória. Uma voz com um peso impossível. E essa voz dirigiu-se-me, perguntando, com uma candura traiçoeira: “Então e como é que o Pedro está a ver o mundo?”. Tremi, senti-me abismado, encurralado. Escolhi a sinceridade: “Bem, o mundo é uma coisa muito grande...”. Ele sorriu, disse que essa resposta estava certa e eu passei no exame.
O leitor desculpará estes meus apontamentos pessoais. É que nesta semana em que nos morreu um Presidente, por muitas vezes tenho recordado estes acontecimentos, as imagens, as ideias. E por uma vez sinto que talvez Portugal tenha sabido ser grato e homenageado completamente uma sua figura maior. Em todas as declarações públicas identifiquei uma tremenda franqueza, como se concluíssemos, derrotados, que aquele era um Homem imbatível.
Vergo-me perante a sua memória. Humildemente agradeço a simpatia, a cortesia, a generosidade de nos termos ouvido. Arrependo-me de não ter tentado nenhum contacto posterior, de não ter tido a astúcia de um e-mail ou de uma carta. Mas o Presidente entenderá: sou apenas um miúdo de uma terra lá longe, a tremer como varas verdes, e o mundo é uma coisa muito grande.
(Originalmente publicado na edição 3851 do Mensageiro de Bragança, em 23 de setembro de 2021)
Há um bom livro sobre isto. O cinema que transcende.
Depois da segunda grande guerra os realizadores entenderam que tinha de haver algo mais para lá da narrativa. A catadupa de acontecimentos não preenche o afago humano de modo completo, nem satisfaz as necessidades de transcendência que a vida moderna impõe.
Era preciso homenagear o tempo e a vida, pelo seu valor intrínseco, o preço justo de existirem. Ficámos com Dreyer, Ozu, Béla Tarr, o mestre Tarkovsky, tantos outros. É como quem diz: ficámos a ganhar.
A valorização do tempo e o estudo da sua textura íntima desafiam os impulsos modernos. Obrigam-nos à permanente voragem. Vem daí o benefício analítico do cinema contemplativo, ao sentirmo-nos expostos a uma ausência de narrativa, apenas o decorrer da vida normal.
Os "road movies" de Kiarostami, no seu estilo único que lembra um neorrealismo italiano muito pálido, contêm os efeitos de uma longa viagem de comboio: a contemplação faz morder o cérebro numa tortura doce, até que se aprende a digerir o tempo na sua velocidade justa.
A transcendência não é, necessariamente, uma espiritualidade. É uma sublimação, um nevoeiro que se ergue para a seguir se condensar numa chuva bruta, profunda, essencial. A alma é uma criança que brinca entre piscinas.
Só então é que começa a viagem.
Deve abrir-se Setembro com cerimónia.
O hábito faz o monge, diz o povo. Os restaurantes são uma espécie de convento urbano. Mas o monge não é como a mulher de César: dispensa aparências, dedica-se com especial intensidade à arte de ser.
À mesa do restaurante o povo ganha uma outra cor. Ficamos gordos e corados, muito queridos, mesmo se estivermos trinca-espinhas e anémicos.
É que, muito antes de alegrar o estômago, a comida vem seduzir o espírito, o olhar, a expectativa.
Abre-se a mesa de um almoço com uma cesta de pão. A qualidade de um restaurante adivinha-se no método, no mimo que alguém dedicou àqueles pequenos nacos de forno.
O bom pão é mais monge do que hábito.
Quando o olhamos, um pouco confuso e desfeito na cestinha, acamado num pequeno paninho bordado, não damos muito por ele. É na boca que a sua textura elástica se desfaz devagar, dá a volta à língua, brinca com as papilas, agarra-se - divertido -, à cova de um dente, antes de aceitar ser degustado até ao fim, cerimonial e fresco.
Setembro é o pão das nossas vidas. Surge assim como uma inesperada oportunidade de alegria, de renovação, no último terço do ano. É preciso respeitar o método.
Viva Setembro!
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