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Sobre cantar no carro e ver por dentro.

por Pedro Ramos, em 18.11.21

 

- Todos os anos sou radiografado de alto a baixo.

Era frequente ouvir esta frase da boca do vizinho do primeiro direito, quando aguardávamos a chegada do elevador no átrio da entrada.

Tudo isto muito antes das análises custo-benefício, das normas da DGS, dos princípios éticos da razoabilidade médica, da rejeição da obstinação terapêutica, etc.

Mas tudo isto já depois daquele dia em que, no recreio da escola, torci um pé durante o torneio de basquetebol. Naquela altura ainda não tinha um telemóvel, e foi preciso recorrer à telefonista, que me ligou à minha mãe, que me levou ao hospital. Comecei a perceber os princípios da imagiologia.

Tarso, metatarso, cuneiformes, calcâneo, falanges, cubóide, navicular. Os ossos do meu pé, pelo lado de dentro do meu pé, debaixo da minha pele, expostos numa fotografia em contraluz na parede do consultório, sobre a qual dançava, livremente, a caneta do médico. Ele ia dizendo "vês, está tudo bem", eu acenava que sim, evidentemente está tudo bem, a transbordar de fascínio.

Esse meu velho vizinho fumava a toda a hora, adormecia ao sol da tarde no quentinho do carro, o seu banco reclinado, a nuvem de fumo quente, o olhar vigilante da mulher, que se debruçava no limiar da varanda da cozinha. Uma cena de filme.

Obedecendo às leis estéticas do cinema, o carro é um dos lugares mais seguros para cantar.

O duche é um clássico da vida real, porque alia o conforto da água quente ao eco abafado, que faz todos os sons normais parecerem obras dignas de disco platina.

Roubou-nos Hitchcock o gosto pelo descanso na banheira, apagando para sempre o potencial de liberdade desses momentos matinais, mas podemos, ainda assim, continuar a alimentar sonhos de eficácia capitalista em camadas obsessivas de cremes e músculo, à Christian Bale.

Há algo de profundamente empático nas cantorias automóveis. As famílias felizes entoam cantigas em conjunto, desafinam como quem se abraça, trocam referências como quem troca cromos. As ideias do futuro familiar crescem mais quando colocadas na estufa criativa do veículo automóvel.

Quer seja no ridículo de Family Guy, o arquétipo da família americana, ou no amor absoluto do Quarto do Filho, de Nanni Moretti, o carro é o lugar da alegria antes da tempestade, empacotado de mergulhos de fim-de-semana ou acampamentos nocturnos na floresta.

Sobre carros e filmes, há milhares e milhares de páginas por escrever. Como o tempo do carro urge, pressionado pela modernidade verde, é importante que se faça um esforço. Uma urgente radiografia antes da arqueologia.

O novíssimo modelo Range Rover 2022 é uma incrível obra de arte brutalista. Um Dune em quatro rodas e em esteróides. Vem equipado com o mais inovador dos sistemas de bloqueio de som, de modo que o mundo lá fora poderia estar a desmoronar-se num estrondo apocalíptico que, dentro do veículo, nada passaria de um suave fragor. Cada passageiro pode definir a sua playlist, escutar nos seus auscultadores particulares a música do momento. Nem um incómodo, nem um desafino, nenhum bebé a berrar, nenhuma mãe a desembrulhar sandes mistas do seu berço de papel de alumínio.

Alguns anos mais tarde, o meu vizinho morreu. O seu estimado, evidente, previsível cancro do pulmão. A sua mulher definhou mais rápido, abafada entre os xailes negros, a tristeza, a memória do fumo.

Vendo-a debruçada na varanda de alumínio, desmaiada ao sol de outono, o realizador levantaria o véu em câmara lenta, a melodia a subir no compasso, e um coro de vozes felizes para lembrar:

Non sarà facile ma sai

Si muore un po per poter vivere

Arrivederci amore ciao

 

 

 

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publicado às 16:55

O diário vital.

por Pedro Ramos, em 18.11.21

Expoente da autonomia: fazer-se um homem a sua própria epopeia.

Chegou-me a ideia por meio deste fabuloso texto da The New Yorker. Fredericks, poeta amador, professor universitário, decidiu aos 8 anos começar um diário que manteve - 66.000 páginas depois -, até pouco antes da sua morte, aos 89 anos.

Um diário reveste-se de inúmeras vantagens narrativas: por um lado, a atualidade de cada pensamento está assegurada pelo compromisso biográfico, pelas amarras temporais da escrita. Configura-se como uma espécie de anti-ficção, em que a verdade reage à verdade, sem qualquer exercício de prognose que empodere o autor. Somos o que nos acontece, a obra é fruto dessa passividade contemplativa.

A infância no Missouri, o divórcio dos pais aos 16 anos, os anos de Harvard, os passeios no Central Park, a iniciação no trilho da homossexualidade. Episódios da vida de um homem banal que passou a vida a sonhar agigantar-se, fazer-se personagem de um romance que quase ninguém quis ler. O cronista da New Yorker, Benjamin Anastas, resume de forma ácida: "At once more addictively engrossing and fatally tedious than anything else I have read, it is the strange chronicle of a “great” man whose genius is recognized almost exclusively by the chronicler himself."

A doce ironia é que a mais voraz das vontades cede a força perante o teste do talento. O diário não é bom de se ler. É isto o desperdício de uma vida inteira? O purista exige o diário publicado intacto. Dezenas de volumes, no trabalho laborioso de compilação, arquivados então em cofres de instituições bancárias e hoje nas salas do instituto Getty.

A certo passo, em 1982, Fredericks confessa sobre os seus diários, num momento de maior desalento: "I have wasted a life in writing them. They are without value. And yet they’ve helped keep me sane.”

Há uma lição útil neste desapontamento: recordar-nos que o projeto grandioso da vida pode fracassar. O mundo está cheio de praias onde os maus poetas, como os amores, vão para morrer. Mesmo que se fotografem nesse último suspiro, é ténue o valor do negativo, que apodrece à luz do sol e do tempo.

Aliás, parece claro que os detalhes mundanos, persistentes e insistentes de uma vida habitual, nada acrescentam aos outros, que também levam a sua vida ao porto da morte, como é bom e justo. Quem procura nos outros os seus dormires, os seus copos de café, as suas listas íntimas, as suas necessidades idiossincráticas, bem pode despedaçar as milhares de páginas, fazer delas lume, e ir para fora do livro habitar a sua própria pele, fazer o seu próprio chá, falhar de maneira encantadora.

Um detalhe é uma nuance, uma pequenina luz como a do Sena, que dá sabor às histórias e orienta a rota dos projetos. Uma extensa lista de detalhes é apenas um detalhe ainda menor, nem sequer uma nota de rodapé, um quase nada que não chega a doer. A vida não cabe no papel. Não dediquemos a vida a coisas que ardem.

Sobram muitas dúvidas sobre esta forte ideia para fraco homem: até onde chegaria a obsessão? Perde um homem a vida a escrever-se? Inventa episódios para parir páginas? Ou, pela positiva, força-se a sair de casa, a conhecer a rua, a passear no mundo, com o fito de regressar cheio de memórias tenras no regaço, dispô-las sobre a tábua de uma mesa, contá-las metodicamente, reproduzi-las em dezenas de folhas de papel, e, depois de tudo, dizer: é isto a minha vida? Com que personalidade retorcida se resiste a saltar um dia, uma semana, um mês, um ano? Como se resolvem os dias de náusea, bebedeira, distração, ausência de tempos mortos? Que confiança permite deixar no papel os mais pequenos detalhes da vida íntima, da sexualidade, da escatologia, do ópio, do vinho? Que exibicionismo?

O ser humano, sabe-se, é falho das grandes qualidades. Não se equilibra, não se anula, não se concentra, não se respeita, não se contém. Espalha-se ao comprido sempre, tropeça na existência como num trapo, ziguezagueia. Se se atribui especial convicção de talentos, se se vê numa pele de estrela, se não sabe afogar o ego numa banheira cheia de realidade, nem falhar consegue.

 

Alguns dos diários de Fredericks. Grant Cornett, The New Yorker.

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publicado às 16:54

Os domingos felizes.

por Pedro Ramos, em 18.11.21

No tempo da infância os dióspiros do quintal da minha avó esperavam, tenros e maduros, no seu lugar adequado dos ramos da árvore. Esperavam compassivamente a minha chegada ao domingo, quando depois do almoço, depois do café, depois das brincadeiras tontas (horas a fio a chutar uma bola contra uma parede), a minha avó dizia para ir à árvore pegar um dióspiro. Tagarelamente, lá ia até ao ramo mais baixo, inspecionava o fruto mais laranja, e num movimento de rotação puxava-o contra o peito.

A longa mesa de madeira da sala tornava-se uma mesa de operações: com a ponta de uma pequenina faca, de modo delicado, a minha avó rodeava a coroa do fruto, soltava-a como se fosse uma tampa, e depois esventrava em quatro pedaços simétricos aquele coração de polpa doce e escorregadia. O manjar era dividido pela família.

A minha mãe dava preferência aos dióspiros mais densos e fibrosos; nós, os putos, felizes consumíamos os frutos muito empapados e moles, rindo da anestesia induzida pela textura borrachuda e efervescente ao contacto com a face interna das bochechas, as paredes da boca, os dentes de leite, os rostos imberbes.

Depois o sol vinha assobiando os seus arroios e saias, subindo ao final da tarde as escadas do céu, como subíamos nós os degraus da idade. Nos parapeitos de todas as janelas repousavam taças de marmelada fresca, deitadas em talhadas doces debaixo de um lençol de papel, recortado fino, à margem, na mesma tesoura que horas antes cortava as linhas de um novelo branco, ou horas depois debulhava, já ao frio de uma lua húmida, as entranhas de uma sardinha.

Era o tempo em que os domingos ainda não eram tristes.

Depois a avó começou a deslembrar. Hoje o comprimido da tensão, amanhã o nome dos vizinhos, depois o dia da semana, depois a sala da casa, depois o gás ligado a noite toda, entregue à vulnerabilidade absoluta de um fósforo ou de um cigarro aceso.

Aos poucos abandonámos a casa. Deixámos a chave debaixo de uma pedra, assumindo que era de novo o tempo de entrar a natureza pelas janelas, fazerem os animais seu ninho na alcova desabitada do sótão, dançarem as aranhas entre os cantos do tecto, com os seus nós bordados nos dentes de uma enxada, nas verduras do fundo do tanque, nas circunvoluções diluídas da mangueira do quintal, nas extremidades da tesoura do peixe.

A casa fez-se um novelo branco de memórias e pó, e deixou-se penetrar pela correria inexorável das estações, até chegar a este outro outono, o moderno, em que visitámos o espaço. Ali estava o quintal e a árvore, as folhas caídas da cor dos dióspiros, os dióspiros caídos da cor da terra húmida.

Dezenas de dióspiros como folhas, casas de insectos felizes, no júbilo da calda doce.

 

 

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publicado às 16:53

O extremo exercício da beleza.

por Pedro Ramos, em 18.11.21

A linguagem universal da família é uma unidade a que, por defeito ou excesso, sempre nos resumimos.

A história das histórias assenta toda nas relações familiares: a Família original de Jesus, as famílias amplas das civilizações e das guerras, a família operária do capitalismo inicial, a família conservadora do salazarismo (que copiava as anteriores), a família rasgada e recosida pelo divórcio, pela pluralidade de formatos, pela globalização (filhos distantes, avós empacotados em instituições de solidariedade social, um espartilho de ligações fracas alimentadas a likes no Facebook e notificações de aniversário).

Talvez por isso seja “A Metamorfose dos Pássaros”, de Catarina Vasconcelos, uma aposta segura. Ao apontar à universalidade, evita as marcas de um cinema português difícil de escutar ou compreender. Tudo se apresenta luminoso e claro. A narrativa poderia morar confortavelmente num conto ou pequeno romance, porque o guião é rico e bem escrito, de textura delicada. A imagem dá-lhe um recheio cujo único defeito poderá ser, para espectadores mais adeptos da aridez, uma sensação de repleção próxima do excesso.

Um embalo marítimo coordena a navegação, de modo que, se num tempo nos sentimos a afastar devagar ou a perder a concentração, logo a seguir somos capturados para a rota apropriada, deliciados no detalhes de mesas decoradas ao pormenor, o fluxo de ondas serenas, as frutas férteis ou os arvoredos. Quando um cortinado espesso se abre para uma ampla imagem natural, fica explicado como a vida familiar é só o princípio da ponte para algumas verdades maiores.

A "Metamorfose dos Pássaros" é a fórmula de sucesso para resolver o que a curta-metragem “Metáfora ou a Tristeza Virada do Avesso” (2013) deixou em aberto. Uma ferida profunda de uma mulher que perde a mãe antes de ser mulher inteiramente, e que pretende comunicar de cá para lá essa ausência, absorver através da cortina do tempo e das superfícies de água todo o amor que se perdeu naufragado. Um jogo de espelhos e de medo, de quem se contempla para se resolver, e sustém a respiração para sobreviver dentro de água. É preciso morrer um pouco para ultrapassar o peso da morte.

A tragédia marítima de um pai que sentimos sempre ao largo de uma marginal incerta, comunicando pela luz intermitente a sua presença intermitente de amor doce. Cada segundo de imagem vale a pena, cheio de peso e muito belo.

Somos beneficiários privilegiados da autorização que nos é dada para entrarmos num mundo que não nos pertence. Também por isso respeitamos a obra, assinamos um contrato, ficamos calados.

 

 


E se aquele que ama dorme, as mulheres que ele ama / sentam-se e dizem: ama-nos. E ele ama-as. / Desaperta uma veia, começa a delirar, vê / dentro de água os grandes pássaros e o céu habitado / pela vida quimérica das pedras. / Vê que os jasmins gritam nos galhos das chamas. / Ele arranca os dedos armados pelo fogo e oferece-os à noite fabulosa. / Ilumina de tantos dedos / a cândida variedade das mulheres amadas. / E se ele acorda, então dizem-lhe / que durma e sonhe. / E ele morre e passa de um dia para outro. / Inspira os dias, leva os dias / para o meio da eternidade, e Deus ajuda / a amarga beleza desses dias. / Até que Deus é destruído pelo extremo exercício / da beleza.

- Herberto Helder

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publicado às 16:52

Do princípio ao fim do mundo.

por Pedro Ramos, em 18.11.21

Conversemos um pouco sobre Werner Herzog.

Realizador da Baviera, especialista em tudo o que é arte: da lente e do resto. Falemos só parcialmente, muito na rama, porque é enorme em peso e espessura a sua obra, alternada entre a ficção e o documentário, o que cedo indicia um espírito curioso.

Herzog não tem medo de penetrar na realidade crua dos mais diversos temas: da questão da pena de morte na América, especialmente dilacerante em "Into de Abyss" (2011), à origem profunda da espécie humana, no interior de "Cave of Forgotten Dreams" (2010).

A caverna de Chauvet abre-se apenas uma vez por ano, no sul de França, depois de 32 mil anos de isolamento hermético: uma cápsula perfeita onde se encontram restos de uma outra humanidade, ainda assim ligada à nossa atualidade por meio da tecnologia de ponta que possibilita a datação, classificação e investigação de cada milímetro cúbico deste espaço.

Nas paredes sombrias encontramos, à força de focos de luz nos ângulos certos, figuras rupestres, representações de cavalos, vacas, cães, outros animais que hoje classificamos de domésticos. Porém aquele era o tempo selvagem do grande frio glaciar, e o homem era caçador e presa em simultaneidade de funções.

A datação de carbono permite descobrir que desenhos sobrepostos, de animais semelhantes, foram criados com 5 mil anos de distância. A mesma caverna, a mesma escuridão, mas dedos e mentes diferentes, gerações irmãs na lonjura das eras.

Os leões das cavernas tiveram pior sorte do que a nossa - extinguiram-se. Encontra-se no processo de estudo uma vértebra de urso (o peso, a estrutura, o rugido), conservada em camadas de calcite. 

A pequena escultura de um "Löwenmensch" (homem-leão) denuncia o homo espiritualis, amante da relação entre o humano e o animal, uma transmutação santificada, focada na fecundidade e sexualidade. Recordamos de passagem a Vénus de Willendorf, ou a ainda mais antiga Vénus de Hohle Fels, com cerca de 40 mil anos de criação.

Em "Living with the Gods", uma produção da BBC Radio 4, de 2017, Jill Cook, curadora principal das coleções do Paleolítico do British Museum, é confrontada com uma dúvida legítima: se era aquele o tempo da luta pela subsistência, em nome do alimento, da manutenção do fogo, da proteção vital, como aceitava o coletivo que alguém se dedicasse tão prolongada e minuciosamente à Arte? A sua resposta foi lapidar: Era preciso alimentar a "relação com as coisas invisíveis, com as forças vitais da natureza, cuja conexão era também vista como essencial para garantir a vida de sucesso". Isto é: nas grutas fundas da Europa central de há 40.000 anos, os nossos irmãos viam já na luz criativa a luz da vida. Somos filhos dessa clarividência. 

Fluidez e permeabilidade. São as traves-mestras de um pensamento, ou da sombra de um pensamento, que conseguimos intuir de cá (o hoje) para lá (a antiguidade profunda e rochosa): nesta casa de cristal, entre estalagmites e fontes de calcário, aceita-se que uma árvore fale, que um homem se transforme num animal.

Um contínuo perpétuo, que confirma a importância dos espectros: a luz em banda, as formulações empacotadas do amor (a atropelar datas de validade), a física quântica. A modernidade comportamental em que já então mergulhávamos a nossa intencionalidade figurativa, das artes do corpo, à imagem e ao som. Resiste testemunha dessa altura uma pequena flauta de resíduos ósseos, cuja melodia respeita a escala pentatónica.

Em toda a caverna existe uma única representação humana. Tudo o resto é homenagem ao outro: as bestas, os utensílios práticos, as confabulações.

 

 

 

 

Em "Heart of Glass" (Herz aus Glas), de 1976, a música altera-se, mas o objetivo da orquestra é o mesmo: iluminar a grande questão da existência.

Impressionantemente, Herzog aplica o método da hipnose a quase todos os membros do elenco, e é visível ao longo da trama a forma monocórdica e sonolenta de receber o fim do mundo.

A ficção centra-se na morte da força produtiva como morte da esperança. A narrativa começa com a notícia da morte de Muhlbeck, o criador e único depositário da receita para a produção do cristal de Ruby, produto de exceção, essencial à vida económica e à cultura profunda da pequena vila. Logo se instala um desespero apocalíptico, que começa por ser a falência da fábrica, porém súbito evolui para a inspeção de uma tese final: a da falência da Fábrica, como modelo, como aspiração produtiva.

Alguns artesãos-imitadores surgem com promessas de serem capazes de replicar a desejada peça original. Em vão. Tudo em vão. É a sombra da morte que se perpetua pelos longos vales verdíssimos, de encher a vista.

Escutamos a voz do pastor-profeta Hias:

There is no man, no house, only some debris. And then I see someone running on the road below with a burning branch in his hand, crying: "Am I really the last one, the only one left?".

O que encontrarão os seres do futuro nas nossas cavernas do presente? Quem arranha com aguçadas pedras os muros desta casa comum? Quem ficará para manter acesa a fogueira? O que vai permanecer quando as luzes se apagarem?

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publicado às 16:51

7 dias de vida.

por Pedro Ramos, em 18.11.21

Numa enorme alcofa de folhos espampanantes, a lembrar um mil-folhas (à moda do norte), encontrei um pequeno bebé sorridente. 7 dias de vida. Um pequeno livrinho azul para que eu acreditasse: 7 dias de vida, 50 centímetros de comprimento, três quilos e qualquer coisa de peso.

Eram as 9 horas de uma manhã de outubro, o ano de 2021, dois mil e vinte e um, e este pequeno ser humano alternava entre o choro e o riso, todo esperneando, espevitado. Vinha vestido num pequeno fato de treino azul, muito cómico, a exigir uma piada portista. Inspeciono o perfil dos pais e arrisco: já é sócio?

Claro que já é sócio, respondeu-me um pai insuflado, quase a rebentar de orgulho, muito certo, sem qualquer sombra de medo. Não consigo evitar uma certa inveja: a de ter-se assim um anjo sobre a terra, acabado de nascer, perfeitamente perfeito, mas sobretudo a de estar-se nessa inconsciência tranquila, muito plena, no arranque de um dia banhado em sol e outono. Quanta coragem.

É mais difícil imaginar a arte de se ter um filho quando não se teve um pai. Os pais são para mim uma coisa festiva, folclórica, discreta. Um adereço essencial. Um arranjo de se pousar num centro de mesa. As mães é que são a respiração profunda da vida dentro de uma família, a absorver nos seus arvoredos as impurezas do mundo. Mas nesta manhã, confrontado com o quadro que descrevi, obriguei-me a esquematizar um plano arrojado para que, chegado o Dia, eu possa ser pai significativamente, isto é, um pai sem perder o narcisismo, a piada, todos os defeitos.

Recuperei umas linhas escritas há algum tempo:

Antes de nascer um filho, pai e mãe desenham ao detalhe novas camadas sob as quais depositarão a vida. Crescer é deitar fora esses lençóis antigos, e por isso crescer é matar o pai e a mãe, substituir a memória por novas arcadas e abóbadas de uma construção involuntária: a catedral-futuro, a que também podemos chamar filhos, e que é, antes de tudo, o amor.

Possibilitei-me a sua re-significação. O momento presenciado era o mais alto instante desses têxteis excessivos, aberrantes e ridículos, os folhos do berço da nossa própria personalidade. Fiquei sem perceber se os pais procuram dar-se continuidade ou dilacerar-se generosamente.

Tudo a seu tempo, se houver o tempo.

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publicado às 16:50

Os homens invencíveis.

por Pedro Ramos, em 18.11.21

Juntos no cinema para ver homens invencíveis. Os seus incríveis corpos de músculo e força, adelgaçados a ração valente, saltando entre despojos de guerra, granadas quase a detonar, fabulosas mulheres maternais. Entretanto comemos pipocas, excitamo-nos com um grumo de caramelo.

Como nos desenhos animados, também já conheço o fim. A morte anunciada por decreto (rescisão de contrato), o herói em grande plano e uma câmara lenta de bombas cintilantes contra um céu muito azul. Azuis também os olhos da sua filha, um urso de peluche para apimentar a fofura e a bondade, contraste agudo com o antagonista perverso, génio do mal.

Ao contrário dos homens invencíveis, o malvado é quase sempre muito feio, a sua pele abre-se numa cicatriz sugestiva: a raiz do mal - pensamos - estará ali algures, num golpe antigo, pele quebrada para alma quebrada. A estética é uma ética: alimenta-se o grande público com essa grande mentira, uma tremenda sobre-simplificação, útil porque foi longa a jornada de trabalho e o que eu quero é afogar as mágoas em meio litro de coca-cola e pipocas.

O malvado lá vai cumprindo as suas malvadezas, o herói lá vai sendo heróico aqui e ali, sempre disponível, sempre com um infinito acesso a recursos bélicos: balas em quantidades intermináveis, aviões mais rápidos, mísseis arrasadores. A guerra é uma grande alegria colorida.

Um herói seduzido pelo olhar perfeito de uma mulher perfeita, convidado a abandonar a vida dura para se deixar ficar, não com as mãos enterradas num balde de pipocas, mas pelo menos abraçadas a um copo shaken, not stirred, num qualquer paraíso com muito sol, areia e uma cabana.

Porém, a missão. Sempre a missão inadiável, os bandidos a congeminar as suas trapaças, manhosos e incansáveis, navegando um oceano de idiotas úteis que morrem ao primeiro sopro de uma bala.

O malvado, claro, tem outra fibra. Aguenta ensanguentado, maltratado, espezinhado. Tem a força da sua motivação perniciosa e profunda a renovar-lhe o sangue na guelra oxigenada, tem uma navalha inesperada dentro das meias, tem um frasquinho de veneno para usar na hora H. Se já era feio, mais feio fica. E quanto mais feio mais perigoso, mais assanhado, mais animalesco, mais gutural.

O mal é uma coisa má, o bem é uma coisa boa. Tudo evidente, para permitir que dormitemos uns segundos no ombro da parceira que nos tolera tudo, embora não tenhamos aqueles olhos estupidamente azuis, aquela coragem, tudo aquilo.

Um Aston Martin nas curvas do sul de Itália, uma casa isolada numa planície de neve. Uma canseira em despesas de gasóleo e eletricidade, penso eu, enquanto aguardo o elevador para o meu coloquial terceiro andar suburbano e rejubilo porque amanhã é feriado.

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publicado às 16:49

A nova Luz de Serralves.

por Pedro Ramos, em 18.11.21

Quem conhece Serralves orienta-se nos jardins. Com treino, disciplina e algumas visitas, ali estão as nossas mãos com as suas dobras e enclaves, veias espessas de flores e árvores, familiares e acessíveis, fresquíssimas.

As casas do Siza apresentam a sua fachada honesta, ângulos agudos quentes e novas perspectivas frequentes. Cada espaço, um ponto de fuga. A branquitude jura amores a uma falsa pureza que não há.

“Serralves em Luz”, exposição no Parque com desenho de luz por Nuno Maya, patente até dia 17 deste mês, troca-nos as voltas.

Tudo se inverte: os caminhos escurecidos pelo breu noturno tornam confuso o que era clarividente; os rostos-irmãos dos restantes visitantes, que em situação normal analisaríamos com atenção e curiosidade, convertem-se na mais pura sombra, como se por um espesso véu cobertos.

O percurso arranca em modo Twin Peaks. Não estranharíamos muito se o sistema de som emitisse a famosa declaração do agente Cooper: I have no idea where this will lead us, but I have a definite feeling it will be a place both wonderful and strange.

Milhares de pequenos focos luminosos, cirúrgicos, orientam a jornada através de um arvoredo denso, troncos espessos de caruma grossa, nos quais imaginamos a vida habitante do espaço (porque aqui há os animais normais, os insectos próprios, a flora delicada - somos visitantes).

Ao abrir-se a Avenida dos Liquidambares damos graças por faltar ainda um mês até à noite das Bruxas. É que é maior o embaraço de alguém se sentir inseguro no pulmão cosmopolita da Boavista, só pelo ranger incerto de um raminho pisado à sorte ou do borbulhar do próprio chão de areia densa.

No Bosque do Lago recordo Uncle Boonmee Who Can Recall His Past Lives (2010), como se aqui estivesse de novo o vislumbre surreal dos pequenos olhos vermelhos espantando memórias, diagnósticos, dúvidas, arbustos. A água pinta-se de uma imensidão de reflexos, que alcançamos só depois da transposição de um muro de vegetação.

Adiante da clareira se faz clarão, é novamente dia dentro da noite, e o céu tela de uma exposição de nuvens azuis e alaranjadas, friáveis e macias. Rápido se compreende o truque: dois feixes laser à largura da alameda e máquinas de fumo a cuspir o seu bafo químico. O vento faz o resto.

Algures a meio do percurso, somos convidados a atravessar uma das novas e mais fotografáveis instituições do país - os passadiços -, ainda mais modernamente aqui denominada de Treetop. Enormes bolas de luz branca e baça, alcandorando-se entre as copas vistosas, fazem do banal fenomenal.

Resume-se a noite nas vantagens de inverter a perspetiva. Ver no sempre visto algumas novidades, transtornar o conforto no desconforto, passar no mesmo lugar a uma hora distinta, num tempo distinto, em que o mundo se descuida da sua rigorosa farsa ou farda, deslaça de si mesmo a seriedade tensa, e deixa que se brinque nas sombras, deixa que ecoe um certo riso. Talvez haja aí uma hipótese de aprendizagem.

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publicado às 16:47


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