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No decorrer do último século desapareceram do território marroquino dois terços dos seus oásis. Um espaço desértico deveria saber prezar os lugares de água e esperança. Porém se vê ignorando o calor colossal, que vem do sul para arrancar da vida as gotas felizes. Dois terços dos nossos oásis, desertificados, desumanizados. A imagem difusa de dois camelos esfomeados arrastando-se por entre a bossa das dunas. Ao caminhante perdido poderá dizer-se: vens com um século de atraso, e mesmo assim a memória da água não mata a sede.
Em "Atlantic", a segunda faixa do belíssimo novo álbum dos “The Weather Station”, dizem-nos: Thinking I should get all this dying off of my mind / I should really know better than to read the headlines / Does it matter if I see it? / No really, can I not just cover my eyes?.
“Ignorance” é um instrumento virtuoso de evangelização para a causa do ambiente, sem nos perder nas ondas ambíguas do moralismo selvagem. Para essa relação meiga, quase terapêutica, contribui a voz doce de Tamara Lindeman e uma narrativa que se universaliza a partir da experiência íntima: este é o meu mundo, o meu sofrimento, o meu copo de vinho. E se se poderia atribuir a esta jogada retórica o risco do egoísmo, facilmente se descarta a suspeita: I know you are tired of seeing tears in my eyes / But everywhere we go there is an outside, segreda-nos em Parking Lot, para que saibamos ler na emoção uma realidade ampla de oásis apagados e espécies extintas.
Numa altura em que já todas as pessoas honestas podem aceitar que há aqui um problema, as facções agridem-se na tentativa de digerir o maior dos desafios, o de desatar este nó, reorganizar este novelo, harmonizar a nossa presença humana na face do planeta que, muito antes de nós, aqui se encontrava criado.
É que se alguns apostam todas as fichas num Deus tecnológico, outros apostam todas as fichas num não-Deus castigador, pronto a escrutinar cada ação individual, pronto a levar-nos para o mais ateu dos confessionários e ajoelhar, orar, repetir.
É possível que este álbum seja uma pista para desdobrar o enigma. A música é leve, agradável, pop. Acompanhou-me enquanto trabalhava numa tarde fria. Não me agrediu; antes embalou. E no entanto lá se implantaram no cérebro profundo as ideias do ambiente, o medo de perder a beleza (de que se acabe a música), as dunas salgadas com os seus camelos desérticos e nenhum fremen. Talvez esta revolução ecológica que o tempo atual nos exige possa encontrar algum caminho de estilo no conservadorismo suave, um contrabaixo discreto que agita o coração enquanto movemos o corpo, lento e contemplativo, num copo de vinho com vista para o fim do mundo.
Há o tempo da guerra e há o tempo da dança. Nenhum soldado adormece nas terras áridas sem o conforto de uma melodia assobiada entre dentes, no vai-e-vem de pensamentos soltos como areia fina.
Os tempos não vão bons para nós, os mortos. / Fala-se de mais nestes tempos (inclusive cala-se). / As palavras esmagam-se entre o silêncio / que as cerca e o silêncio que transportam, escreveu Manuel António Pina, dedicando-nos no ano inicial da liberdade o alerta agridoce de que Ainda não é o fim nem o princípio do mundo calma é apenas um pouco tarde.
O mundo que, por sinal, não é uma coisa que se salve, nem consta que tenha expressado essa vontade. O mundo é uma bola de vida que Deus criou por motivos ocultos, talvez para se divertir ou apenas para ver o que acontecia (aqui arrisco intuir o sentido a partir da Sua mais aproximada criação: os cães e as crianças). O que é urgente de facto é resgatar a humanidade, ou ainda mais especificamente esta humanidade, concreta, pela qual nos encontramos perdidamente apaixonados - a alegria das festas, o sabor dos poemas, a água pelo rio abaixo.
A ética está no modo: o que ficará de humano quando as luzes se apagarem e tudo for metálico e inteligente, censurado e hermético?
Temos escrito muito sobre gritar fogo numa sala de cinema, mas muito pouco sobre como agir quando uma sala de cinema arde. O meu reino pelo Cinema: Paraíso.
Herberto Helder quis abrir o seu "Os Passos em Volta" de forma marcante, e conseguiu. A frase circula habitualmente pelas redes sociais porque é simples e forte, e tão vaga que pode qualquer um enfiar nesse sapato o seu pezinho arrebitado, sem represálias ou direitos de autor, só para sentir por um segundo a textura dos gigantes. "Se eu quisesse, enlouquecia. Sei uma quantidade de histórias terríveis."
"Se eu quisesse, enlouquecia" é uma forma brevíssima, muitíssimo eficaz de empoderar quem lê, que domestica o medo abismal da loucura, dá à fera as rédeas do seu castigo. Sempre me interessou imensamente mais a frase que surge logo abaixo, discreta: "Enfim, às vezes já não consigo arrumar tudo isso." Há aqui uma franqueza diferente, um baixar de ombros, um enfim.
Têm sido espessos os dias, numa desarrumação gloriosa. Os meus, pelo menos. O carro a abarrotar de malas e sacos, país abaixo, de encontro a uma meia dúzia de metros quadrados onde ainda habita um espírito alheio.
Reconheci-me primeiro numa certa camaradagem com as pessoas anónimas, sobretudo a sua forma de andar (débil, militante, honesta). Depois asfixiei-me em passeios curtos, destruídos e dominados por automóveis. Antes de tudo, senti-me longe.
Pessoas diferentes, diferentes pesos nas partículas do ar. Um transmontano ganha competitivamente nesta análise, diga-se, atmosférica. A vida obriga-o a variações importantes na altitude. É, isolado, o seu coro alegre, reverberando solene nas abóbadas infinitas da planície.
Internou-se a minha avó na casa de repouso. Como se todas as outras casas fossem para o desassossego, para a agitação. "Não é um lar: é uma casa de repouso", repetimos muitas vezes para tentar começar a acreditar, e para que ela também possa um dia acreditar, chave para uma um-pouco-menor infelicidade. A vida é mesmo um balão que se insufla na justa competência dos pulmões para depois vir, devagar, minguando até tocar a terra. Parece-me a perfeita metáfora. Agarro-me ao estilo como a um bote salva-vidas.
Oitenta e seis anos. Sessenta e tal anos de solidão. A ordem dos pratos, dos potes, os degraus das escadas, a memória do corpo impressa no colchão, o armário desorganizado pelo esquecimento, as fotografias de filhos e netos, um pacote de bolachas, um pano de renda, as plantas sequiosas, o velho diospireiro.
Uma vida que se transplanta. A imensa parafernália de vasos comunicantes, redes sociais, antigos hábitos. Casa é o lugar que se conhece no escuro, de olhos fechados.
Agarro-me ao estilo como a um bote salva-vidas. A lembrar o último filme de Wes Anderson, The French Dispatch (2021), mais um exercício de exibicionismo visual abusivo, conservando a sua (bem mais interessante) unidimensionalidade. Todo o filme se exibe como obras numa galeria ou um fresco inamovível, pintado nas paredes de uma prisão.
A obra procura dividir para reinar. As habituais ideias de simetria permanecem, mas cedem espaço a longos períodos de gravação a preto e branco, possibilitando atingir uma distância que as camadas pastel não permitem. O maio de 68 vê-se reduzido a um caricato jogo de xadrez, a gramática vê-se reduzida a um artifício do sempre utópico jornalismo lento, a culinária (ou seja: França) vê-se reduzida ao prazer do envenenamento, o negócio da arte vê-se reduzido ao negócio da arte: reduções que não menorizam, antes sintetizam, episódios na medida da importância das páginas de um pequeno jornal moribundo.
Regresso a Herberto. "Bem, não aguentamos a desordem estuporada da vida. E então pegamos nela, reduzimo-la a dois ou três tópicos que se equacionam." Crónicas de uma super-unidade estética a que aspiramos, mais como método de sobrevivência do que como objetivo real.
Como fogo num campo de trigo, prolifera assim o negócio da venda de roupa em segunda mão.
O sucesso deriva de uma confluência curiosa de tendências: por um lado, a nova vaga do minimalismo pop, de que é exemplo mais recente a empresária japonesa Marie Kondo e o seu "Método KonMari" (grosseiramente, uma forma de pessoas ricas se divertirem a fingir que são pobres); por outro lado, o interesse crescente pelas questões climáticas e pela necessidade de reduzir o consumo e o desperdício.
O instagram também ficou a lucrar com este novo nicho comercial: o número de páginas duplicou, e cada um de nós é hoje ele mesmo e o seu perfil de second-hand clothes.
A ideia do re-uso suscita possibilidades de reflexão. Os antigos aprenderam pela necessidade a conservar tão bem quanto possível as poucas coisas que, à revelia da miséria, iam conseguindo comprar. A distância curta entre a produção e o consumidor gerava uma consciência aguda sobre as implicações da manufatura: como trataríamos os sapatos que calçamos se assistíssemos, diariamente, ao moroso espetáculo público da sua criação artesanal?
Por mais que a produção aumente, e com ela o transporte de mercadorias, as trocas comerciais, o consumo e a globalização, as nossas ruas familiares estão cada vez mais vazias e os pequenos comércios em vias de extinção. Caminhar no passeio parece mais um exercício radical, a que os estacionamentos abusivos, as dezenas de trotinetas elétricas mal parqueadas, os pavimentos agrestes ou desnivelados acrescentam dificuldades.
Aprendi na Granta sobre Rashid Hussein. Palestino, poeta, tradutor, nacionalista árabe. Foi morrer na noite caótica de Nova Iorque, entre copos e cigarros, num incêndio que consumiu a sua coleção de fitas cassete, com imagens de poetas a lerem os seus poemas. Escreve Edward W. Said que "a fumaça das fitas asfixiou-o".
Há, decerto, muitas formas de morrer. E transformar-se o amador na cousa amada, conquanto seja na hora última, é já ir mais longe do que a maioria dos martírios ou das vidas banais.
O poeta faz a poesia um pouco como a roupa faz o corpo. Não lhe é fio de existência, não lhe está no sangue, mas traz o seu rosto mais composto - como matéria simples busca a forma. O poema pode despir-se do poeta, rejeitá-lo como um filho que abandona o pai: aceita os riscos de esfarrapar-se ao comprido, no chão frio, como um cachecol ventoso ao luar de outono.
Mas o poema pode haver quem o ampare, criança perdida, quem se prontifique a uma possibilidade de re-uso, re-significação: "O que és continuarás sendo, de muitas maneiras diferentes", mesmo a tempo do toque do carteiro, a embalagem do casaco de malha branca que veio de lá para cá, do outro corpo para este corpo, por preço justo, e justo de vestir-se e de moldar-se.
Além disso, há o problema do referencial. O ser cada coisa o princípio de uma outra. Quantos poemas não deram à luz novos poetas? Um exilado não deixa na terra-natal o seu corpo produtivo, antes o entrega à terra-nova, dedicando o mesmo tempo à construção da memória e à construção do futuro. Cada um decide onde investir os seus materiais pesados, as suas pedras preciosas, pelo menos dentro dos graus de liberdade que nos permitem as mais ou menos espessas cordas da identidade.
Pássaros que crescem num ninho e dele voam sem regresso. Pássaros que fazem o ninho definitivo, e dele partem apenas para sentir o doce sabor do retorno. Pássaros errantes que debicam aqui para pousar acolá, o seu ninho é o mundo inteiro ou mundo nenhum?
Henri Matisse, 'Arbre près de l'étang de Trivaux, c.1916-17
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