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Os teus olhos derretiam na luz tremelicante. Era o final do dia e ficámos sentados na praça Camões à espera que toda a gente regressasse a casa. Ainda por cima domingo, vento frio. Ninguém guarda as estátuas quando o breu inunda de sombras as ruas estreitas e dos becos sobe o fumo de um pranto, gemidos ou garrafas partidas. Comentei que nunca tinha andado de elétrico - essa espessa lagarta atrevida que prossegue a sua marcha lenta à revelia dos obstáculos, e parece sempre chegar aonde a esperam. O ziguezague dos restantes veículos contrasta com a estratégia da mobilidade em carris: um comboio sabe o seu destino, conhece o seu caminho, ajusta apenas o ritmo e a velocidade da música que canta sempre igual. Tu falaste-me de alguém que foi atropelado por um elétrico, o que é digno de rir quando nos é alheio. A brincar com a morte também somos sempre muito felizes. Depois peguei na tua mão e fomos derreter para outro lado: um restaurante dos que se esforçam muito para que acreditemos que se esforçam muito (igual ao amor, toda a gastronomia deve ser fluída). Ficámos a pensar na manteiga de ovelha que nos apresentaram em cubinhos perfeitos. Disseste: parece gelado, provavelmente porque parecia mesmo gelado a derreter-se na boca como os teus olhos na luz, cada vez mais escura e vermelha. Terminámos a refeição com uma escandalosa panacota de baunilha com goiabada, o cartão deslizou pelo terminal de multibanco, o meu braço enrolou-se no teu braço, Lisboa abriu-se fresca e a preto-e-branco como a Florença de um Fellini. Eu quis escrever para lembrar.
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