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Pode bem acontecer que numa carruagem de metro, numa sala de espera de um dentista ou na fila interminável do posto de correios, tenha o caríssimo leitor, ou caríssima leitora, contactado com uma pessoa infetada com o bacilo da tuberculose. Se contagiosa, as partículas que liberta ao falar alto, rir, cantar ou gritar – “como assim, não sabe onde está a minha encomenda?” -, as partículas, dizia eu, elevam-se elegantes e leves no ar estagnado, húmidas e aerossolizadas, esperando a altura certa para serem inaladas.
Num tempo anterior ao da epidemia das máscaras e do alarme televisivo permanente, com toda a facilidade se instalariam os bacilos na via aérea incauta, principiando um processo lento de protesto, “daqui não saio, daqui ninguém me tira”. Os macrófagos – que estão para o mundo das células como os seguranças encorpados da porta da discoteca estão para a diversão noturna -, bem tentarão remover estes intrusos, o ambiente inflama-se, a acrimónia sobe de tom, mas os bichos aéreos ganham a batalha e fixam-se numa extremidade da nossa árvore pulmonar, empedernidos.
Depois, vem o silêncio. O proprietário do corpo em que tudo isto acontece não sabe de nada. Chega ao destino, ou trata do dente, ou levanta a encomenda – “finalmente, caramba!”. A infeção fica num estado a que chamamos latente: não está a acontecer nada, mas existe o potencial de vir a acontecer alguma coisa.
Li há dias, no jornal, a notícia da morte de Monica Vitti. Apressado, cheguei a casa e procurei A Aventura, de Antonioni, para confirmar a minha impressão íntima e contrariar a informação que antes lera. Certamente não morreu Monica, posto que encontro no ecrã a expressão épica do seu sofrimento contido, a ambiguidade de um amor dividido entre a amizade e o tabu. O filme, de 1960, perpetua uma dualidade entre o mar, que ocupa a primeira metade da narrativa – a viagem burguesa pelas ilhas labirínticas, o desaparecimento de Anna -, e a terra firme onde o tempo finge lavar a memória da perda e enrola na mesma onda Claudia e Sandro.
Mas a presença de Anna permanece latente. Germina discreta dentro do pulmão do amor. Uma pessoa desaparecida nunca morre, parece certo. Menos ainda quando existe entre essa e as restantes um laço invisível de intimidades incompletas. As mulheres das obras de Antonioni induzem no espectador um sentimento de abismo próximo do das escarpas violentas sobre o mar. Olhar nos olhos de Monica Vitti – a que nunca morre – traz o mesmo abalo dos planos opacos da madrugada da pequena ilha, Lisca Bianca.
Todas as personagens parecem embebidas no elixir do seu próprio desvanecimento, que consomem em doses cirúrgicas. Claudia corporiza esse terror, ora lascivo, ora nervoso, quando se confronta com o seu rosto no espelho, ou quando conta números em ordem crescente para afastar o tédio, ou quando se enrosca infantilmente num amontoado de roupas, adormecida. Antonioni oferece-nos toda a beleza marítima, mas, cruelmente, impede-nos do seu usufruto ao congelar o futuro na contrapartida de uma ausência.
A respiração lenta do filme beneficia da ventilação marítima. Apesar disso, inalamos o bacilo de Antonioni para que cresça, florido, na floresta brônquica. O dia poderá chegar em que a latência se desbloqueia e a infeção se ativa numa sintomatologia indolente e matizada.
Estima-se que, anualmente, ocorram ainda 10 milhões de novas infeções por mycobacterium tuberculosis (o nome dos bois). Nas mãos do amor, da perda e da ausência, sabemos que se morre muito mais.
(Originalmente publicado aqui.)
O tempo veio, qual bola de espelhos espantosa, quebrar-se no chão da discoteca. Lindo de se ver no reflexo da luz - o corpo em difusão entre partículas de álcool e uma gloriosa tristeza -, o globo equivocado da nossa vida breve eclodiu uma paródia de pequenos fragmentos vítreos que se disseminaram pelo espaço de animação, desde a porta de entrada até à arrecadação das bebidas. Cada pequena peça recebia o conforto das luzes coloridas que permaneciam em funcionamento, e recebia também o reflexo de uma parte do rosto de cada ser dançante - entretanto imobilizado pelo espanto. Cada homem e cada mulher, os novos e os mais velhos, os coxos e os discretos, os aleijados e os enamorados, os lesados da bebida, os fumadores, as mães, os donos de cães, as miúdas fugidas de casa de seus pais, os rapazes esfolados do bilhar, os divorciados a leste, os retornados, os soldados, os monges budistas, os artistas de variedades: perante cada um deles, o tempo fragmentado, a memória sensível do passado, o pequeno rastilho de luz, e os seus rostos refletidos nessa enorme esfera alegre, vertiginosa e, agora, efémera. Todos entenderam um número infinito de coisas importantes.
La Scala ou Les Yeux, Maria Helena Vieira da Silva
À tona das coisas materiais permanece uma impressão mental, que é como uma propriedade física dos objetos, uma memória que lhes faz raiz e movimento. Aqui esteve a mão dele, confessa um livro empoeirado. Aqui se sentou ela, relaxa a poltrona num suspiro lento, soltando átomos de uma conversa amiga. Estes são restos do que aconteceu, impercetíveis por vezes, sempre um desafio à sensibilidade e ao gosto. A lente que permite vê-los é de grande amargura: olhos atentos súbito submergem, observando tudo, e em cada canto uma nova recordação da vivência dos espaços. Aqui respirei, penso. E todas as coisas do mundo ganham corpo.
Parece insustentável que a humanidade persista. Uma vida diária que se acumula como pó, impossível de limpar, tempo sobre tempo sobre tempo numa vertigem que esgana o pescoço do desassossego, sôfrego, a ver se sobra um pouco de luz ao fim do dia, uma candeia que alumie o rosto de um filho ou o sabor quente do vinho no final do trago. I always wanted to die clean and pretty, canta um anjo através da voz de Mitski, no desejo universal do apagamento.
Existe um direito fundamental de não participação. O fumo trepa as paredes de um bar enquanto tudo se agita e remexe na pista dos dias. Agradeço, mas não quero. Talvez depois.
Depois de fechar esta porta tão cedo não regressarei. A porta da casa de família, o lugar do crescimento, o ponto longínquo no mapa da memória. Ainda assim, por cá fica o chão frio, a lareira limpa, os armários, os cristais, a cama feita, o arrepio dos mármores. Uma casa fechada, cantaria Zambujo, mas guardo a chave para confessar-me aos deuses da saudade. Não deito a chave ao Tejo, antes seguro-a nas mãos diante o rio – este corpo de água, esta força, de onde nos vem? Para acordar cedo, para pôr o músculo ao trabalho, para passar a ponte, para picar o ponto. Milhares de milhares. Que força é esta, cantaria Godinho, o mestre.
Eu vim de longe, do lugar onde morre o cinismo e toda a graça se acrescenta no calor do madeiro. A noite cristalina de uma aldeia deserta em que os olhos comovidos se aconchegam, os cães ladram livremente, ninguém pensa no preço do metro quadrado. Existe realmente um céu – estrelado, imenso, a rebentar de espaço. Existe realmente um horizonte – desimpedido, livre, a rebentar de tempo.
Há pouco espaço e pouco tempo nesta carruagem. O meu casulo urbano, decorado num minimalismo pobre. Pack lightly, move fast, cidades em revista, um pulmão comunitário a respirar no compasso do comboio.
Meti tudo em caixas. Vou sair de casa. Out of the box, criativo, útil, enérgico. Alguém me diz que é absolutamente urgente que eu incorpore essa vivacidade existencial: um puto novo, na flor da idade, no pico da funcionalidade, no máximo expoente da esperança. Um puto a caminho da cidade grande, como nos filmes americanos – imagens de autoestradas descomunais, o carburar monstruoso dos motores, miúdas em tank tops floridos, paragens para batatas fritas em estações de serviço sombrias.
A ver se arrumo tudo isto. Depois, claro. Agora há o Novo Ano, depois a Viagem. Tudo em pequenas caixas: os livros, a roupa, os utensílios de cozinha, as poupanças, a parafernália digital. O número de infetados vai aumentar, isto diz a matemática, a lógica, a experiência. As filas engrossam para a testagem gratuita, entopem-se as linhas de saúde, a linguagem nauseante dos telejornais roubada aos manuais de epidemiologia.
Um sentimento de iminência. Quase lá. Um pequeno deslize e tudo terminaria. O monumental azul das escarpas da Arrábida faz arder os meus olhos, habitantes normais dos montes sobre montes, tapetes de olivais. A escarpa da Arrábida, sonhos de uma moradia branca e lisa de um poema, memórias das vinhas do avô, sentado à merenda numa pedra, numa varanda natural sobre o imenso Douro. Agora a Arrábida, antes as praias limpas do Norte, os cafés da Madalena, a capela do Senhor da Pedra, as ruas da Foz. Em desespero, como em busca de ar, desenho uma triangulação para me orientar, como funciona um GPS ou as três cores de Kieślowski.
Procuro símbolos eficazes na comunicação de uma mensagem: a distância e o caminho, para explicar o estado de coisas; o progresso, para alimentar dúvidas e semear esperança; a inquietação, para homenagear José Mário Branco, do Porto, muito mais vivo do que morto – síntese ao alcance apenas dos sublimes.
Mas não me faltam dentes. Algumas coisas ardem de uma forma inacessível, assim uma dor dentária nos mantém acordados trincando memórias como pastilha elástica. A minha escola primária, onde a competição feliz se via alimentada pela luz de um jardim florido, a paz de ser criança e explorar dias infinitos. A outra escola, casa da adolescência tola, excessiva, irreverente. Depois a faculdade, os fins-de-semana desenhados pelos horários das carreiras, a serra do Marão como orografia de sentimentos paralelos à frieza do teatro anatómico, O Grande Desconhecido arrepiante dos pedaços de gente – ainda assim, vulgar e normal desconhecido se comparado com o mistério insondável da curiosidade nos olhos jovens, fluidez ética entre a argúcia científica e o voyeurismo bizarro da morte.
Um pequeno país onde existe tudo. Um país para percorrer devagar e ir deixando migalhas de saudade, um amor que é sempre na distância o seu próprio esboço. Alimenta-se uma sombra até que se preencha de verdade. A ideia da coisa cumpre-se no exercício da idealização. Meti tudo em caixas. Vim de lá para cá pela estrada larga, escutei o murmúrio do mar num búzio, congelei o oceano inteiro numa fotografia, vi o nascer do sol nas dunas finas da Granja.
Morreu o american dream, a medicina perdeu o charme, a saúde pública é uma forma humilde de servir a comunidade. Resta-nos o amor e o cinema. O sabor do café quente. Os verões na barragem. A esplanada da Cinemateca. As curvas do rio Sabor. Cacilhas. Os braços do meu pai. Os dealers do Chiado. O pão com marmelada da minha avó.
Depois de fechar esta porta tão cedo não regressarei. Guardo a chave como salvaguarda. O futuro é ainda tudo.
(Originalmente publicado aqui.)
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