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É possível que, num dramático volte-face, os mais velhos tenham toda a razão.
Um dos problemas é que as coisas mais importantes do mundo são também as mais vagas. O amor, a educação, a alegria.
Não há guerras em abstrato, nem fome que não cause náusea.
Estou-te grato porque quando fecho os olhos há um balão de amor que me insufla e me eleva a um lugar mais alto. Não te esqueço, nem o teu olhar, nem a forma como fumas. Trigo do joio, foste-me o pão quente de todas as manhãs e eu não mudava nada. Nem sequer te condeno por me teres trazido a esta cidade grande: são largas as avenidas que hoje encho com o abraço da minha tristeza lânguida, terna, pouco hostil. Não quero ameaçar ninguém, não quero arrancar flores. Quero não querer muitas coisas. Pacato, a ganhar barriga e a perder dias, a ver filmes e a desfiar o novelo dos sonhos que tecemos em conjunto. Talvez ainda possamos cumprir alguns deles: tu pegas desse lado da vida, eu cá me arrumo no meu lado da vida. Como as mãos pequenas do nosso amor num balanço de patinhos e água fresca. A ti, que me fizeste crescer e me deste toda a música: não deslaço o laço mas desaperto o nó. Não minto para dizer que não dói: dói: mas é da vida que doa e é da vida que cure, como é da vida morrer no final e estar vivo antes.
É sempre igual a forma das ideias poéticas. Pelo menos as minhas. Um esboço de contornos marcados por uma luz cálida, depois um coração de pedra na ideia, ao centro, muito alto, depois o som de um rasgão nessa pedra, um corte ou fratura descendente, de cima para baixo, da direita para a esquerda, depois a extremidade inferior do coração cai no chão aos pés da sombra, como ajoelhado aos pés de uma catedral, e um clarão branco impossível inunda por brevíssimos segundos o corpo visceral do poema: coisas verdes, pinheiros, o mar sempre, raízes, o rosto da minha mãe, uma serenidade incrível. É assim o meu altar interior, e não posso acabar a frase por ser tão grande este meu medo de
É da responsabilidade de quem escreve gerar um certo incómodo. Um texto que seja um pequeno bombom de consumo fácil não gera atrito nas fendas sinápticas, não deixa um amargo de boca. O que fica não dito, a areia na engrenagem da sintaxe, um palavrão desconfortável como um calhau no meio da estrada (repare-se).
Ali ao Campo Pequeno vejo muitas vezes, ao raiar do dia, o desfile de ciclistas. É um gosto que a mobilidade suave se traduza, de facto, num movimento visualmente suave, uma estética contínua de fluxo sem ruído e sem especiais engarrafamentos. O observador deste cenário não pode deixar de sorrir um pouco ao comparar o rosto tenso dos automobilistas com as faces muito normais dos ciclistas. Lá vão eles. Não poderiam escrever crónicas.
Um pouco adiante, operação STOP no Saldanha. O ciclista segue, o automobilista pára. Parece ser esta a regra, e parece justa. O automóvel entra no centro da cidade como um elefante numa loja de porcelanas - desajeitado, excessivo, muito gordo. A bicicleta bem se arruma ali no cantinho, entre o biombo Ming século XVI e a taça Vista Alegre.
Esquecemo-nos quase sempre da arrumação das coisas, e de como a harmonia e a coerência são tão frágeis quanto os tectos de porcelana do Paço Real de Santos, esse fabuloso palácio cedido às exigências estéticas da diplomacia francesa.
O paradoxo das bicicletas na cidade é que elas servem hoje, maioritariamente, quem há algumas décadas as rejeitaria com desprezo. São os turistas e os jovens de classe média e alta quem vejo montados nos práticos objetos, amiúde ativando e desativando funcionalidades através de aplicações nos telemóveis. Estão sobretudo nas boas avenidas largas e planas, e deslocam-se do centro para o centro - isto na cidade mais central das cidades, longe do resto do país.
No filme clássico do neorrealismo italiano, Ladrões de Bicicletas, a malha social é bem diferente, mas a mesma utilidade fica comprovada no transporte de gente pobre e crianças de olhos tristes. Quando, no princípio do filme, a mãe da família recolhe jogos de lençóis para usar como forma de pagamento pela bicicleta, está a dizer-nos que é nossa a obrigação de democratizar o acesso a este instrumento de mobilidade social.
Cresci numa pequena cidade no interior do país. A extensão de uma extremidade à outra rondará, talvez, uns 3 quilómetros. E, no entanto, só há poucos anos foi possível ver grupos de ciclistas com frequência, e mesmo assim mais no registo de “passeio matinal de domingo” do que de “trajeto diário trabalho-casa”. Também não existem ciclovias ou soluções partilhadas de mobilidade.
As “soluções partilhadas” são igualmente filhas da uberização do consumo, para que possamos ordenar, a partir do conforto de casa, que uma outra pessoa nos venha trazer um saquinho de comida. Através da app (o mundo vê-se só em ecrãs), espoletamos que alguém se monte num motociclo e aguardamos no sofá. Mas ainda há uma réstia de humanidade, puramente simbólica, quando uma compaixão nos abala ao percebermos, pela velocidade do bonequinho sobre o mapa, que “vem de bicicleta”.
Quando chega a caixa de sushi não pensamos na guerra da Ucrânia. Talvez Putin, num sofá diferente, também faça encomendas e distribuições à mercê da ponta de um dedo, da introdução de um código. A ciberguerra é o futuro porque somos preguiçosos. Com o avanço tecnológico parece clarificar-se a natureza humana, espelho cada vez mais limpo, cada vez mais claro. No tempo das grandes sangrias, os generais também organizavam os seus homens no espaço virtual do mapa. Presumiam que morreriam alguns, estimavam os cavalos tombados e o peso perdido em armaduras enferrujadas. Hoje, todos os algoritmos permitem ver o futuro, um sorriso russo abala o S&P 500 e satélites precisam com detalhe a orografia dos terrenos. Mas ninguém estanca uma hemorragia, ninguém confirma que é humano e de carne o corpo do soldado de Donetsk.
Como Elon Musk ainda não existia na pele de figura bilionária em 1982, podemos relaxar a ansiedade de descobrir o criador da bicicleta voadora do E.T., maravilhosa criatura abandonada na Terra (arrepios). Recuperando a mítica frase “E.T., phone home”, há tantos povos desligados de casa, não obstante os telefones, em fronteiras a ferro e fogo onde homens poderosos, com todo o tempo livre, decidem quantos pólos tem o mundo.
Porém, segue a capital o seu bailado frenético. Longe das regiões do Leste, longe do interior do país que governa, longe do imigrante que depositará no tapete da entrada - do lado de fora -, os rolinhos delicados de peixe frito. A gente espreguiça-se um pouco, baixa o tom da luz, rumina meia dúzia de banalidades. Da minha parte, por hoje, está feito. O resto deixo convosco.
Em Portugal, o condutor de um uber pergunta-me se acredito em vacinas. Na Ucrânia, caem bombas. No fundo da rua, alguém tombou o caixote do lixo. Na sala de estar, um profundo silêncio.
Escrevo com a cabeça cheia. Jorge Sampaio: "Então como é o que Pedro está a ver o mundo?". Pudesse eu repetir a resposta, para falhar melhor. Cabeça pesada é mais exacto. O computador produz um burburinho nauseante.
No estendal, uma toalha que seca. No céu, nuvens. Na Ucrânia, nuvens. Na memória, o peso de amigos pequenos, alguns animais, o prado urbano de Serralves. O cheiro da pele da minha avó, a malha gasta do seu casaco de malha, a neve de caspa sobre os ombros.
Ainda assim o mundo existe, e nele a sorte, o privilégio e a saudade.
Podemos escutar o riso dos amigos, o barulho dos copos, a música excessiva, a dança frenética do clube de loucos. E embora haja infiltrações (de humidade ou de tristeza), a água corre quente, o céu chora, o pão em fatias vem no cestinho, preparado a afogar-se no molho das conversas.
Em Portugal, o futuro. Na Ucrânia, o futuro. Em toda a parte, o futuro.
Em Portugal: Domingo. Uma instituição. Fecho os olhos e sinto o vento muito leve que mora em todas as catedrais. Corpo de Deus. Hoje respeito as coisas maiúsculas.
era o tempo de acreditar
que viria a festa
e que seria branca
sobre a mesa, pratos
pão quente
alguns amigos
naquela altura ainda não morrias
ainda os sapatos se te
enchiam de areia
já não cantam as flores
No dia do grande incêndio
o bombeiro dormiu até tarde.
- Deixa arder,
impôs na mulher o tom ríspido.
Era o único bombeiro do mundo.
- Deixa arder,
e sorriu.
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