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Na parte funda do bidão, na cave da casa, no centro da aldeia, no canto da terra, longe: aí corre o que resta do teu azeite, líquido de ouro, o último testemunho da tua vida inteira. Trabalhaste tanto para manter erguidas as paredes da casa, hoje vergadas ao peso do tempo, casa de gatos vadios, casa abandonada e limpa, cheia de pó por dentro. O teu coração, avó, espaço amplo de brincadeira e histórias lidas devagar ao cair do pano: agora novo pano cai sobre a tua cabeça, uma névoa de esquecimento que te aquece as têmporas no batimento cardíaco como naquela altura nos aqueciam os lençóis plenos de bonecos. Agarro uma vassoura para limpar as escadas e escuto o mesmo som de tantas tardes de sol. Regar o quintal, que agora é um mar de ervas altas, já não faz tanto sentido. Porém ainda deposito nos teus vasos de cactos algumas gotas de água. Aprende-se tudo sobre o amor nos hábitos da jardinagem: queria partilhar contigo as confusões do meu coração tão tonto, tão frágil, que tenho regado tanto as ervas daninhas e ignorado tanto os tristes cactos, sôfregos e dignos, crescendo em silêncio. Ainda há uns meses te fazia o almoço e o jantar, te dava a medicação, te dava o meu amor árido. Orgulho-me disso. Fiz o que devia fazer, uma vez na vida, pelo menos. Encho de azeite algumas garrafas. Com este azeite farei o jantar para mulheres que não aprovarias. Minha avó, meu amor, estou tão longe. Agarro as tuas mãos, a tua pele tão fina, o teu sorriso feliz. Pedes-me que nunca me esqueça de ti, pedes-me que volte mais vezes. Tenho de voltar.
1. Foi ali como se nos encontrássemos na estrada ampla: era um martelo pendente sobre a nossa cabeça, morte anunciada. A foice, por sinal, sempre uma esperança e uma condenação ao degredo, sempre milhares de futuros a nascer e a morrer na mesma hora, como era esse amor e a lucidez de te falar para te escutar depois.
2. O sol intenso fez-te do cabelo ruivo uma espécie de miragem: a memória agarra para largar depois, fiel à natureza circular da vida urbana. Eu cansado e macerado de bebida e algazarra e tu serena a ver passar as horas, certa e alta e sem nome. Sei que virá a festa para acordar de vez a lucidez ofuscante, a explosão de cores, a birra dos corpos tensos quase a aceitar dançar, a gloriosa revolução de estarmos juntos. Nenhuma avenida aceitará o teu nome. Será bonito morrer para acordar no fim.
3. Pausa para café. Reparo que não morro ainda, reparo que me prolongo pelas avenidas dos dias. Se cambaleio, é mesmo por estar ainda vivo. Existe uma certa beleza. Amanhã vou ao cinema, como em todos os amanhãs. Ser solidário e simples, sem deixar de rasgar. As fibras dos dias são elásticos num jogo de mãos e dedos entrançados, um novelo de pastilha elástica que alguém esqueceu num sonolento canto da boca.
4. Um amigo trouxe um tabuleiro de xadrez que dispôs sobre a mesa da sala. As peças adversativas pacientemente aguardaram a nossa atenção. Mas depois de duas ou três jogadas tortas decidimos ir passear ao sol, esquecer toda as leis da táctica e deixar a arte da guerra para quem tem especiais ambições políticas.
5. A luz elétrica de Saigão não tem vergonha do barulho do mundo. É bom saber chorar-se e pensar-se: o indivíduo, a comunidade, a narrativa larga. Uma no cravo, nenhuma ferradura. A grande história da liberdade é libertarem-se os povos, um após outro, das amarras espessas e pegajosas da sua própria sombra.
6. Algumas crianças nasceram em países do continente africano e agora moram em Lisboa para serem felizes. O mundo é um lugar muito grande, mas também é um lugar muito pequeno. O planeta não é uma superfície plana, mas também não é uma curva perfeita. A única curva perfeita mora no teu sorriso. Sento-me um pouco junto dos adolescentes irrequietos para falarmos sobre vacinas, isto é, sobre doenças que não são: explico algumas ideias e oiço muitas mais: uma tia que morreu longe, uma febre inexplicável, lendas maravilhosas. Tenho alguma dificuldade em assumir o meu enorme amor por esta humanidade. Tenho dificuldade em aceitar que talvez haja em mim um impulso de ida, novo e assustador e denso: e se eu, simplesmente, fosse?
7. Há muitas pessoas boas. Devo ler o Cardoso Pires.
8. Estava tão feliz naquela noite. Era uma noite que uivava um bafo de erva. Uma nuvem espessa em cima da tua cabeça. Disse-te olá e não foste gentil. Uma nuvem espessa em cima da minha cabeça.
9. Encontrei uma amiga que sei que não imagina que eu a sinta como uma amiga. As coisas são sempre uma máquina de fazer problemas, mas é dos problemas que emergem, por vezes, como borbulhas vulcânicas, as alegrias. Há linhas nas mãos que são como contornos de montanhas. Há pessoas que conhecem a alegria de subir o Marão. Há dedos de conversa que fluem tão lentos e lindos que poderemos acreditar ver neles a seiva de uma árvore ainda por nascer. Reparo que não morro ainda. Amanhã vou ao cinema.
Salgueiro Maia, por Alfredo Cunha
sou teu amigo com o copo cheio e há uma certa luz que se acende quando entras na sala, algo que dentro de mim diz olha um amigo, e é novamente verão quente com sabor a pipocas ou farturas na praça, comprámos bilhetes para ver uma banda qualquer, e isso vai ser uma alegria maior do que encontrar no chão uma nota preta. sou teu amigo do tempo simples e do tempo morto, inequivocamente amigo, sem mais, nem menos, um abraço aberto, descaradamente aberto, eu precisava tanto de um abraço descarado e franco que me envolvesse ao ponto de dizer olha um abraço tão lindo, e é novamente verão quente, passámos a tarde na piscina a topar miúdas giras e a comer gelados, a fingir músculo, a encolher a barriga, a não-pensar no mundo enorme, nos astros em cima, no futuro em frente, ali é que nascia um amor germinativo que hoje me agarra no braço para que regresse a uma origem, caminho para casa, caminho de morrer ou nascer, caminho de te ver novamente tão serenamente sorrindo, como se Deus existisse e tivesse dó de mim e entendesse dar-me só uma alegria pequena para se aninhar dentro do meu braço, escorregar para o meu coração, e aí ficar a dormir uns dias, T1 como novo, bem situado, boas áreas, luz natural, sem fiador.
Casas, Maria Helena Vieira da Silva, 1957
"Homens que são como danos irreparáveis
Homens que são sobreviventes vivos
Homens que são como sítios desviados
Do lugar"
- Daniel Faria
pessoas: estátuas de mármore
frio na noite nevoenta da nossa
coletiva ansiedade
pele lisa como num arrependimento:
pessoas: estátuas de seda
teço-te uma linha mais
para não deixar ponto no fim,
pronto este vestido de carne:
a justa medida de deus.
canto: é larga a esperança, e
penso: se olho nos teus olhos
posso morrer aqui,
entre os despojos de guerra
do teu tão grande silêncio.
peço: canta,
para que a tua voz conheça
de perto
a minha pele de mármore,
para que a tua voz se eleve
como um pássaro doido
acima da cicatriz.
dedico e debico o meu sonho
a esta nova luz.
grão a grão.
não morrerei nunca.
Por mais pequena a terra, seja dito o seu nome.
Por mais pequeno o nome, seja dito o seu nome.
Nenhum lugar é pouco.
Em tudo o que há, há tudo.
Ponto final.
Corri em Lisboa pela primeira vez. Foi para apanhar o autocarro para ir ter contigo. Acho que deves saber que essa verdade mora aqui, alheia ao fingimento. Não penses que escreverei sempre. A pena pesa mais do que um destino. Corri em Lisboa para te ver outra vez. Estava um vento impossível. É justo que conheças estas transparências.
On repeat: Corre corre, Los Hermanos. Ah, é madrugada, mas não vem ninguém / de longe eu vejo o temporal. Uma limpa solidão de bandeira ao vento, bem diferente da velha mágoa soturna do abandono. Eu cresço dentro da tristeza, o meu bisturi arrasa-lhe as entranhas fundas. A linda arquitetura dos órgãos e das sombras, das fibras musculares e nervosas, dos nossos desiquilíbrios neuroquímicos.
Uma cabeça onde cabe tanta coisa: os pensamentos, a razão, a filosofia, a grande tristeza do mundo, o desmoronar dos glaciares, o sabor de um gelado, a música, as leis, a espuma da cerveja, o sabor da cereja, as curvas áridas onde alguém sonha morrer-se.
Perco-me na geografia, entre sei-lá-eu-quantas-colinas, em que Alfama espalharei má fama, em que morro morro? Miradouro era quando o meu avô levava o farnel para a vinha e ficávamos juntos, encostados a um muro de pedra seca, a respirar o mesmo ar.
Nenhum dos comboios para Antuérpia faz paragem no teu coração.
Reverendíssimo,
Pequei. Foi num instante e já mal me recordo. Sei que estava um pouco inebriado, cheio de sono, muito mal disposto. Algumas luzes brilhavam intensamente, havia os olhos dela na sombra. Não consigo explicar o que aconteceu.
Sabe, sempre fui crente em Deus mas tenho ignorado as maiúsculas. O estilo é que é o meu maior pecado. Adormeço na sintaxe e acordo com arrepios de dor neuropática na ponta dos dedos. A minha impressão digital tem tanto sono dentro, como eu naquela noite.
Li que hoje é dia de renascer, como Jesus no seu tempo. Entendo renascer mais como dar à tona da água depois de um mergulho profundo. Estar vivo ou estar morto, tanto faz, a chave mora no processo.
Na adolescência passei muitas tardes na barragem. O cais era um local misterioso onde os corajosos iam mergulhar na água muito fria e muito funda. Eu nunca tive coragem nenhuma, mas tenho usado a farsa como uma medalha e um bilhete de entrada em sítios obscuros (como aquele onde, reverendíssimo, pequei).
Uma corrida na plataforma sem escorregar e depois um salto para dentro da água negra. Os peixinhos abanavam no fundo os seus pequenos corpos esguios, e os corpos adolescentes suados e tolos eram parafusos em queda livre. À altura desconhecia as leis da física, ainda mais as outras.
Recordo bem uma certa ocasião, repetição do processo, em que talvez um excesso de ímpeto, um balanço alegre, ou apenas peso a mais, induziram no salto para a água uma tal energia que, bem lá dentro do aquário fresco, senti os meus pés imprimirem no chão de lama uma marca vigorosa. A força justa para sentir as roldanas dos calcanhares sustentar o impacto, estremecer um pouco nas barbatanas de um peixe grande, um grande grande medo. Deus como fiscal finalmente percebendo que é inválido o ticket.
Podia ter sido dramático. Podia ter ficado por ali a minha história pessoal: adolescente encontrado morto na barragem o cais é um perigo toda a gente sabe é filho da professora muito bom moço muito inteligente ainda tentaram manobras de reanimação mas nada a fazer.
Já não teria conhecido a dor da rejeição, o sabor dos pastéis de Belém, a luz de Mafra, a textura de um pequeno pecado, reverendíssimo, foi apenas um pequeno pecado, uma mágoa, uma mancha no colarinho da camisa, a minha mãe com a sua escova a esfregar com muita energia uma gotinha de fairy resolvia em menos de nada todo o problema.
Jesus morreu na cruz e sofreu tanto. E era quem era. Como se explica tudo isto? Ele andou por cá, pisou este chão, bebeu deste vinho. Depois foi, depois voltou, depois espartilhou-se pelo universo inteiro, enchendo de riso e luz cada momento. A morte não é barreira nenhuma. É uma lâmina, um filtro, uma película, uma camada: daqui para ali é um pequeno passo, um saltinho ingénuo, uma alegria de peixes. De lá para cá não há mais do que um suspiro, pulmões cheios de ar. Governa-nos o sangue.
O Jardim das Delícias Terrenas, Hieronymus Bosch
A minha mãe e a minha irmã fumam juntas antes de dormir. A minha mãe fuma na sala, de olhos fitos e impenetráveis na telenovela. Ali cresce um amor qualquer, dependente de um juízo editorial e comercial, como todos os amores. A minha irmã fuma na varanda do quarto, de olhos húmidos devotados à silhueta da lua, quando há lua. Ambas morreram um pouco na mão de amores antigos. Ambas se confessam em silêncio, cedendo a um certo desespero calmo. Um dia morreremos todos, e as nossas campas desenharão uma pequena fila de terra e mármores. Amar e fumar são faces do mesmo verbo.
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