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Like the gates of Hell.

por Pedro Ramos, em 15.04.22

 

Perder a agência e perceber que o mundo segue o seu rumo caótico à revelia de tudo. Não ontem, nem hoje: sempre. Essa coisa incompreensível. Uma eternidade não circunscrita, simplesmente livre. O tempo é um vento louco que grita nas paredes da avenida, como homens vestidos de medo assustam as mulheres solteiras na festa da aldeia. Elas estremecem, ou coram, ou dizem grandes barbaridades, ou chamam as amigas, ou chamam os maridos. Seu porcalhão, dizem. E há um riso que invade o medo para destruí-lo por dentro. Elas descobrem que podem ser homens vestidos de medo a assustar homens vestidos de medo. Celebram a morte do espantalho. Perdi tanta vida por tão pouco, penso que pensam.

É preciso ser muito feliz para se ser triste em condições. Há certos requisitos. Uma noite chegará em que sentirás o peso das lágrimas apertar-te o pescoço como as mãos de um estranho, uma incrível aflição, e a partir desse dia serão mais felizes os dias calmos. E alguém chegará depois para te abraçar entre os soluços, e finalmente chorarás.

Entre cães e pombas, muito barulho, algumas canecas de cerveja. Virá a morte e terá os teus olhos, escreveu Pavese. Virá a vida e terá os teus olhos, penso. Embora siga o mundo o seu rumo infrene, alguém será o sal da terra. Nas mãos pequenas uma criança oferece o sal a quem passa, olhos doces sem fantasmas, quente no colo da mãe como fui quente naquele dia, abraçado entre soluços. A música também se sublevará na copa das árvores, tão confusa e tão linda.

 

 

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publicado às 12:26

Diplomacia.

por Pedro Ramos, em 13.04.22

 

Sei que foi uma mentira piedosa. Um jeito que se fez a quem, do outro lado, exasperava por ar. Eu bem poderia auxiliar-me o sistema respiratório, dosear os suplementos de oxigénio, mas nunca gostei das livrarias de curso. Tu sabias tudo isso, o que torna tudo mais belo e mais cruel. Eu também sempre soube tudo. 

Se tu me visses na rua, naquele dia, as minhas costas tão vergadas, gostarias. Ali vai o meu corpo como vagabundo morrente indolente frágil: os outros também olham laminarmente de lado com o engodo da pena na boca. Tu já nem sequer acreditavas que eu fosse frágil. Pensavas: é tudo fingimento. É que tu sabias tudo mas não acreditavas em nada. Eu acreditava em ti. 

É a promissora carreira diplomática do amor. Há muita verdade nas mentiras. Agora escrever-te é mais um teletransporte, daqui para o futuro. É certo que tens os pés na areia e tudo é doce como depois do vendaval sair à rua e comprar fruta. São lentos os meus passos. Não vejo porque devo ter pressa de morrer mais rápido. Ainda tenho esperança de ter dois ou três truques na manga, uma reviravolta, um tremendo susto, um desafino, demoradas orações. Estou tão sozinho que sei que até de mim terias pena, como é humano dar de beber a quem tem sede. 

Vai correr tudo bem. Cessar-fogo imediato. A crónica vai mudar de casa para onde não aperte tanto a sombra da tua ausência. Tenho muita pena. Tenho toda a pena do mundo. Ainda não sei digerir. E se é suposto sempre digerir, e se é suposto que depois de todo o mal sempre venha nova alegria, de que serve sequer sentir alguma coisa? Não haverá nada digno de se matar ou de se morrer? 

Fecho os olhos e tacteio as paredes de vidro desta tão grande tristeza. Observo como mudas a tua textura, a tua linguagem. Era tão boa a nossa parceria. Tenho tanta pena de morrer. 

 

 

 

 

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publicado às 21:35

Ela.

por Pedro Ramos, em 11.04.22

 

Sobre Le notti di Cabiria:

 

As coisas todas com a sua espontaneidade à flor de uma pele sem noite nem sono.

O seu meigo olhar cansado, triste de tanta merda - uma vida ainda a começar mas já o peso da mala, cheia e longe, abandonada num restaurante e órfã da memória de amores. Alguém a quem ainda assim se rouba o pouco que tem, impiedosamente, a sociedade com o seu machado e a perfeita mágoa. E ela comunica com o corpo todo, os pequeninos dedos, a cor da testa, os adereços no cabelo curto, a dança alegremente hiperativa.

Ela que mora na tela e dorme de dia. Ela que só nos filmes viu lagostas e homens bons. Ela como nós.

 

The-closing-shot-of-Le-Notti-di-Cabiria-22-the-dow

 

 

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publicado às 21:37

Reflexos.

por Pedro Ramos, em 07.04.22

 

Morreu o pianista. Seja ouvido o seu som. Do outro lado da cortina, uma sala axadrezada à Lynch, estátuas de mármore branco, um piano de cauda reproduz uma melodia nauseante. Podemos pensar nos Reflexos do Sassetti. A música engorda o espaço como se testasse os seus limites, como a tragédia distende do coração as paredes finas. Herberto Helder escreveu: "uma mulher com quem beber e morrer", era essa também a minha impressão. Beber e morrer: sinónimos. Mas o corpo do piano prossegue intocado à revelia do som. Nem som, nem sim, nem festa: noite branca na cama onde tantas vezes vi renascer tantas coisas. Rejeito as outras mãos. Estremeço muito. Atarantado de tudo, como no dia em que a minha mãe se sentou diante mim no sofá da sala para me explicar que tinha morrido o pai. Volto sempre a esse sofá e a esse silêncio, a vida é toda para mim um retrocesso, um falso passo, a alegria de um bom som dentro da armação dos poemas. Mas aqui ninguém morreu. O meu coração bate para encher de sangue todas as ausências. Estou longe longe longe longe longe de mim. Um cartaz na autoestrada diz em grandes letras vermelhas: VENDO - O PRÓPRIO. Ver para crer, crer para ver, querer ver, vender para crer, querer vender. Penso que odiarias esta construção frásica, o que agora pouco importa: é intensamente minha esta dor, também é minha a estrada e o silêncio. O piano nunca pára de tocar. Abraço Sassetti na espuma longínqua. É tudo meu e nada me pertence. Palavra do Senhor.

 

 

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publicado às 14:36

Futuros.

por Pedro Ramos, em 06.04.22

 

Era assim que era para ser. Já não será.

Agora vou ter de deitar fora este futuro e arranjar um novo. 

Estão pela hora da morte. 

 

 

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publicado às 23:39

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