Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]



Lembrete.

por Pedro Ramos, em 22.06.22

 

É sempre assim. Quando saio de casa, derretido de felicidade, pensando fixamente na bola de gelado que vou lanchar, é quando a gelataria da Avenida de Roma está fechada. É a única gelataria do mundo. Fecha à quarta-feira. 

 

 

Autoria e outros dados (tags, etc)

publicado às 18:40

Lírio e Tulipa.

por Pedro Ramos, em 21.06.22

 

Abri a janela. Entrou uma forte rajada de vento que fez tiritar as chávenas do café. Eram, apesar de tudo, as nossas chávenas de café. Embora quebradas, com as tinturas diluídas, com a memória da borra esgravatada ao fundo. O nosso café. De quando viemos finalmente morar para o alto da Estrela, perdendo a vista nas muralhas de ferro da vizinha e no verde profundo do jardim.

Um dia o mundo todo será apenas natureza, e acordar será como sair do sono dentro de uma alfarrobeira. Isto eu finjo que me disseste um dia, para inventar memórias poéticas. Preciso delas para beber de novo um café nesta chávena pequena, cada trago me traz uma recordação tua: a maneira como brincavas com os miúdos, a maneira como não sabias dançar, a maneira como desarrumavas a cozinha de alto a baixo para fazer um bolo medíocre, a maneira como me agarravas pelas costas, de surpresa, e dizias qualquer coisa sobre eu ser a tua sorte grande. Lembro também os teus períodos de ausência, confuso na poltrona da sala a revirar folhas e folhas dos nossos álbuns de fotografias. Um dia o mundo todo será uma alfarrobeira, e acordar será como sair do sono dentro da natureza. Não é assim, porra. Onde raio pus a cabeça.

Hoje não trabalhei grande coisa. A cabeça encheu-se-me daquele vento. Um balão só rebenta porque não aguenta mais. Em algumas alturas sinto que as minhas palavras são limpas e pontiagudas, espinhos ou a ponta de um florete, rápido junto ao corpo do adversário que esgrima. A forma das palavras segue as leis de uma incerta intencionalidade. Cubro os ombros com um casaco velho para ir passear as flores: o Lírio, coitado, apareceu por aí aos caídos, cheio de fome e cheio de sede, salvei-o; a Tulipa tem raça superior, costumavas dizer que se lhe nomeássemos todos os apelidos, nunca mais saíamos dali.

Mas, meu amor, eu penso que já não vamos sair daqui. E a culpa não é dos apelidos da cadela. Nem minha, nem tua. Andámos tanto para aqui chegar. Preciso de me concentrar para não escorregar na calçada.

Tanta noite em branco, tanta página, tanta complicação, tanta gritaria, tanto café: agora que chegámos aqui, onde estás, que não te vejo?

 

transferir.png

Maria Helena Vieira da Silva, Untitled, 1958

 

Autoria e outros dados (tags, etc)

publicado às 18:52

Ir e voltar.

por Pedro Ramos, em 20.06.22

 

Amanhã é dia de novo. Faça chuva ou faça sol: fará sol. Lá longe, cá perto, ou dentro, ou por cima: algures: a luz. Assim quis Deus. Poderia ter feito de tudo isto uma experiência única: a grande lanterna solar poderia ter emitido uma débil luz intermitente, um lamiré. Mas o mundo faz-se de ciclos, círculos, elipses. De outra forma escrito: cortes e recomeços. É bastante curioso que persistamos neste entendimento muito longitudinal das coisas. Vistas curtas, decerto. 

 

 

Autoria e outros dados (tags, etc)

publicado às 22:24

Mudou-se o tempo.

por Pedro Ramos, em 18.06.22

 

Estou em crer que um dos bons indicadores do avanço da idade é o abandono de alguns marcadores temporais que até então orientavam a nossa marcha pelos meses adentro. O princípio da vida alicerça-se no ritmo escolar, a nostalgia de setembro, a alegria de dezembro, o frio de janeiro (no sítio onde nasci, esperávamos os nevões para ficar em casa nos dias de aulas), a confusão de maio-abril-março-junho (é assim a ordem certa?), o final do ano, o verão eterno. 

Por estes dias, no entanto, sinto o peso da idade adulta no escoar do tempo por entre os dedos. Ainda agora desfilávamos avenida abaixo, porque era Abril, e pelos vistos está na altura terrível dos exames finais do ensino secundário, o que me recorda também as longuíssimas jornadas de explicações de física e química, cuja professora daria para dois ou três romances, letra pequena. Lembro com humor uma sua frase clássica, que repetia depois de receber os nossos envelopes cheios de notas - o peso impossível dos envelopes, querida mãe -, e de os atirar com alguma violência para o chão do escritório: "meus queridos, o chão é a maior mesa que temos!". Frase que, sendo um pouco rude no contexto, vivificaria mais tarde, plena de novos significados, nos filmes de Ozu em que os cenários de baixa altura, a câmara pendente rasteira ao chão e a convivialidade japonesa impõe no chão que pisamos a função de grandiosa arena da vida comum. 

Às vezes posso jurar ser a vida como um livro que deixamos aberto, por acaso, apenas para ir ali tirar um café, ou abrir a porta ao carteiro, e cujas páginas deslizam: primeiro muito suavemente, depois tudo de uma só vez: até um novo capítulo, cá a jusante na narrativa, e duas ou três palavras insistem em penetrar os nossos olhos e marcar lugar na nossa memória. Nos livros é possível ter um vislumbre do futuro, no inglês mais bonito, um glimpse of the future. 

Ainda agora me deixavas, desterrado no fevereiro frio, e já hoje nascem em mim novas flores, que juraria não ver ontem. Árido fui, mas só da ignorância de mim mesmo. Tu, que sempre vias mais longe, sei que talvez tenhas também ponderado o meu direito a florir. E agradeço. 

Pedem-me do serviço que realize a marcação de férias, sei lá eu para quando programar o descanso. Se súbito um vento me enterrasse no poço das minhas lamentações, e fosse, digamos, uma terça feira de setembro - aqui recordo Clarice Falcão, artista de abraçar -, desejaria logo para a quarta feira seguinte o direito a um dia mergulhado em lençóis, filmes e comida de merda.  

Se todas as famílias infelizes o são cada uma à sua maneira, todas as famílias pobres são felizes de uma mesma forma alegre: a imaginar o que fariam se ganhassem o Euromilhões. É claro que somos incapazes de saber o que fazer com tanto dinheiro. O que fascina os vícios do jogo não é o valor na conta corrente, é o sabor, ou antes, a intuição de qual seria o sabor da liberdade. A possibilidade de dizer um dia ao patrão (falo hipoteticamente, para efeitos legais): chefe, vou-me embora, que esta merda não é pra mim, sem estar suscetível a represálias ou consequências gravosas: essa é que é a grande fantasia da idade adulta. 

Teria mais algumas coisas a escrever, mas fico-me por aqui. 

 

 

 

Autoria e outros dados (tags, etc)

Tags:

publicado às 13:05

Chegámos aqui.

por Pedro Ramos, em 13.06.22

 

Quando vier o homem que te vai querer matar, é isto que deves fazer. 

 

FU-2jvLWYAEZftA.png

 

Quando vier o homem que te vai querer matar,

é isto que deves fazer: 

 

Dobrar o teu corpo sobre o teu próprio corpo,

cobrir o teu corpo com um cobertor anti-balas,

 

Esperar. 

 

Isto vai ensinar-te a professora na escola. 

Talvez no primeiro dia de aulas. 

 

Talvez segurando nas mãos 

(meu Deus, com que coragem) 

O manual de instruções técnicas. 

 

Não há nenhuma solução. 

Não há nenhuma palavra sequer. 

 

Chegámos aqui. 

 

Autoria e outros dados (tags, etc)

publicado às 12:20

Apontamentos.

por Pedro Ramos, em 12.06.22

 

nunca sei o que fazer com as mãos nem sei dos braços o seu espaço vertical os ombros e o balanço e todo o som já não estou sequer dono da tristeza um bouquet de mim entregue sobre a minha campa como uma encomenda as tuas mãos tremem no resquício do som era a minha voz e toda a madrugada muito fria e onde deixas as palavras para partires mais leve, se é tão grande o peso das rotativas de mexer a grande máquina discursiva

que te amo é um enorme trabalho parcamente remunerado altamente precário não sei se respondo ao anúncio para servir cervejas no verão ou se é para ficar, sério e muito fiel, como os velhos servidores da casa mãe, onde é barato o marisco e duvidosa a bifana e sempre quente o molho da francesinha, no cartão embotado do sentimental papel das ementas

nada há na ementa que supere o soneto nem no cravo surgem as certas sílabas na contagem da voz: amo-te, dizem as rosas em cima do meu corpo cansado, que a morte está para o corpo como o espinho está para a rosa.

há de sobra no bolso ainda assim os trocos para um último café. água suja que acalenta o vício. é necessária a máxima cautela. os fantasmas sobrevoam a multidão, executam uma exaustiva contagem, analisam fluxos migratórios, aninham sobre os sobreiros a sua fome imparável. os fantasmas de todo o descontentamento, que desimpedem no céu as nuvens quando cobrem a lua, que fazem limpa a água das fontes ou fresca a água dos rios, os mesmos fantasmas que te restringem a mão estendida ao céu, no sonho infantil de resgatar um pouco da lua ou da água fazem emergir, voraz e com a mesma fome, o outro monstro adormecido. o fantasma para garantir que vês sem agarrar. o último martírio dos vivos.

depois é que a luz morre e a textura do mundo aceita o peso da mão. depois é que vêm aos braços as energias dançantes e toda a noite a música ecoa pelos salões recheados de retratos de família e travessas austeras. depois, muito depois, do lado de lá da linha: saberei o que fazer das mãos, dos braços verticais, das pesadas rotativas da magnífica maquina discursiva.

 

(Nota editorial para conforto do leitor: esta é uma recolha não editada de ideias registadas em torrente durante um concerto dos Interpol.)

 

Autoria e outros dados (tags, etc)

publicado às 14:25

Memória de colchão.

por Pedro Ramos, em 07.06.22

 

Sobre amores e desamores, já canta o povo, nem às paredes confesso. Mas aquele homem entrou na loja com uma imensa confiança nos ombros. Hirto, como acontece estar sempre quem só de dúvidas se veste, para dissuadir o grupo e sacudir as mágoas. Mecanismos ancestrais de proteção vital. Abeirando-se do balcão da entrada, questionou a funcionária: a menina sabe-me dizer se aqui se vendem aqueles colchões com memória? 

Nem nos piores pesadelos alguém se lembraria de conceito tão malévolo. Porém operaram sem frenar as dentadas rodas do capital, dia após dia após dia, distribuindo recursos, repartindo dividendos, pontualmente pagando até pequeninos salários, para que neste final de tarde de junho alguém pudesse responder afirmativamente à questão colocada, apontando com um dedo invulgarmente fino e dizendo: ao fundo do corredor, fale ali com a minha colega

Há bons motivos para que os objetos não falem. É uma vida inteira de exploração. E se o colchão e a almofada se recordassem do que já viveram, o que lembrariam? E por quanto tempo? E com que grau de detalhe? Noites de insónia (pesadelos, paranóia), noites de amor, noites infinitas de lágrimas, manhãs frescas no aconchego de uma janela aberta, álcool e as restantes adições, filhos bebés, filhos gatos, netos cães. Luas de mel ou luas apenas. Leitos de tanta morte anunciada nos folhos da doença, as secreções e fluídos do corpo quando anoitece de dentro para fora, semelhante a uma flor que sussurra de sede. O meu quarto de hotel, um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é, mais todas as outras camas vazias, beliches, batalhas de almofadas, as camas do cinema e do teatro, flácidas a fazer vista, as camas estreitas das casas de estudantes, os lençóis prisionais, a almofada do adultério à cabeça do sofá, como um cão tolerado pela gerência. 

Passa meia-hora, talvez meia-vida. O homem faz o pagamento. O colchão com memória será entregue no domicílio combinado à hora combinada. 

 

 

Autoria e outros dados (tags, etc)

publicado às 20:18

Pausa.

por Pedro Ramos, em 02.06.22

 

Tu conhecias de cor a minha serenidade, a que usava como uma camisa, válida de ambos os reveses, acumulando pó e muita sombra. Sabias que debaixo marulha o fogo manso de uma ansiedade contida: espaços de luz e um silvo agudo, estridente, de pássaros desconcertados. Viste-me edificar esperanças que eram apenas fumo do manso fogo da ansiedade: os escombros sobre os ombros, a pele ardente, floreada de escaras, marcas da insidiosa chama. Tu estavas lá quando se revoltou num lugar profundo a madrugada de frustrações, alguma dança. E vieste pelas margens do mundo amparando o desapertar dos nós, o desenlace dos dedos, a forma solta e perfumada das coisas belas quando acabam. Éramos uma ode triunfal no auge da sua alegria neutra, como nas canções dos Cure ou nas pinturas do Monet: alguma coisa que sempre permanece, perecível, real, intangível, doce. Alguma coisa real até às entranhas, real até doer. E escutar hoje nas paredes do cérebro o som desta memória é despertar mais cedo, abrir a porta da varanda, sentar-me numa cadeira em frente à praia, ouvir a voz de Deus no enrolar das ondas. 

 

Autoria e outros dados (tags, etc)

publicado às 18:22


Mais sobre mim

foto do autor


Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.



Pesquisar

  Pesquisar no Blog

Arquivo

  1. 2022
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2021
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D
  27. 2020
  28. J
  29. F
  30. M
  31. A
  32. M
  33. J
  34. J
  35. A
  36. S
  37. O
  38. N
  39. D