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Senhora do nepalês.

por Pedro Ramos, em 19.07.22

 

Conhecemos no nepalês uma senhora de 88 anos que nos engarfou em conversa com uma genica fabulosa. No sítio de onde eu venho tudo morre cedo. Fico intrigado com estas personagens longas, que passeiam pelas avenidas e nunca verificam a cor do semáforo. O molho era bastante picante. 

 

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publicado às 10:28

Hipocampo.

por Pedro Ramos, em 17.07.22

 

É tremendo e espesso o abismo da luz noturna sobre as ondas. As mãos tremem, desabrigadas, prevendo tormenta. O teu olhar também flutua, fantasmagórico, desbravando a floresta do nosso descontentamento. Tudo isto, para quê. E olhavas-me de novo, mansão de luzes loucas, baile infrene de fantasmas, gatos apaziguados pela tua mão antes de esgaçarem o pescoço de uma galinha. Tens sempre uma metáfora de merda, mas aqui ninguém come metáforas de merda. Ignorei uma vez mais o teu ataque vil. O sangue da galinha dissipou-se entre as frestas que permeiam as lajes da cozinha. Agachaste-te para limpar com um pano branco as linhas dessa luz, para que o teu vestido absorvesse nas bainhas um pouco dos eflúvios da carne. Há mais numa gota de sangue do que em todas as metáforas do mundo.

Mais tarde, já alta noite alcandorada numa lua ténue, passeamos de carro pelas ruas da cidade, a catar relâmpagos na iluminação elétrica. Na rádio escutamos alguma coisa que lembra os Cure, from the edge of the deep green sea: she listens like her head's on fire, like she wants to believe in me. Cada cantiga traz uma prece, a vontade de concretizar-se. Um pequeno livro de poemas de Hannah Arendth confirma isso mesmo: a luz de escrever poemas depois de toda a dor. Transcorrerão as horas / e passarão os dias. / Mas um desejo permanecerá: / a mera persistência. Quem sofre e fica vivo, é certo que ultrapassa algum limite para se superar. Sofrer é uma pele de cobra que urge renovar, é uma pele queimada que alguém disseca entre gemidos. Mas o que dói é nunca a dor: antes a sua interpretação, processamento nervoso, acontecimento elétrico: o mesmo com a morte. Quem se desmemoriasse do amor não sofreria nunca, não é líquido sequer se morreria.

A memória, sempre a memória, como fratura previsível. Mora no hipocampo, disso lembro-me (apropriadamente) das cadeiras de neuroanatomia, os muitos feixes nervosos pela espinha abaixo, as gravuras incríveis. Em espiral pelo hipocampo abaixo, ou adentro, para a frente e para trás, assim acontece que nos ocorra o que queremos dizer. O rosto da minha avó distante, o rosto da miúda fria na noite da revolução (quartel do Carmo) - formam vizinhança incómoda nos nano-pedacinhos de cérebro. É mais complicado do que isto, como tudo é.

Da memória do mar quis Deus que se ocupassem os cavalos-marinhos, grego antigo Hippókampos, de elegância equina. Os machos organizam delicadas danças para seduzir as fêmeas, e ficam depois agrupados em certas comunidades espacialmente limitadas: as fêmeas, pelo contrário, têm a liberdade de passear até 100 metros de distância da residência fiscal.

O hipocampo (fundo no cérebro) ganhou o nome pela similitude anatómica aos ditos bichos, de forma que considero apropriado agradecer ao deep green sea a capacidade de memorizar o teu número de telemóvel quando segredado, ao meu ouvido, num qualquer lugar obscuro.

Never never never never never let me go, she says. E os seus olhos como massa de água na rebentação da praia, uma casa de chá na maresia, traves-mestras de construir-se o futuro.

 

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publicado às 19:37

Gaiola.

por Pedro Ramos, em 09.07.22

 

Tudo isto é tralha perfeitamente inconsequente. Aqui moram estas palavras como as rolas na gaiola construída à mão pelo meu tio-avô. Dentro da gaiola moraram toda a vida, acabando-lhes o mundo ao fim da rua, resumindo-se-lhes o festival dos sonhos à perspetiva de uma taça com água fresca. Um dia o meu tio-avô pegou na gaiola e na espingarda, levou ambas para o meio do mato e, uma a uma, soltou as rolas e acabou com elas. Assim é também tudo o resto.

 

 

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publicado às 19:07

Polinização cruzada.

por Pedro Ramos, em 05.07.22

 

Andas sempre a transbordar de amor. Que grande felicidade. Um dia aqui, outro ali, ainda outro além: mil amores pelas ruas conquistados como sendo flores, como sendo gatos. Não há amores vadios, há amores vazios. Honras o teu amor com um zumbido intenso: ris-te e dizes que é polinização cruzada.

 

 

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publicado às 13:50


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