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Quando encerramos o pão a nascer dentro do forno ficamos contemplando, lá fora, a alegria do fumo. E das chaminés fumegantes da aldeia, em plenas noites de inverno, também a visão do fumo que trepa nos fica sempre na memória. Há uma continuidade profunda nestes lugares de fé. As casas envelhecem, e delas os proprietários, as cabras e as flores. Mas o amor telúrico - agrícola, concreto - é uma coisa que não cessa nunca. Algumas coisas não cessam nunca. A vida bem vivida impõe-se, involuntariamente, como uma religião: a boa vida bela não ascende como o fumo, antes fixa pesados os pés à terra pura, na germinação de plantas de comer e na pele de filhos. É assim na aldeia, se antes de adormecer esvoaçarem loucos olhares, voo rasante, por cima de algumas linhas poéticas. O Daniel Faria, desassossego sossegado. Morrer será como receber no correio uma epístola das finanças.
Ainda não estou lá. Ainda não cheguei. Vinte e seis anos. Vejo que andas perto, fico um pouco mais feliz. Eu ainda não. Persisto acumulando distância e gerúndios. A mesma chuva molha-me todos os dias de maneiras diferentes. Não seco a roupa: queimo-a. O mesmo pedirei que façam um dia com a minha pele. Sinto a morte roçar-se a mim numa sensualidade profunda. Sinto abismos. Vejo-te melhor, isto é, sem mim, como esfregar os olhos depois de acordar. Aposto que te sentes como esfregar os olhos depois de acordar. A minha miopia não a curam lentes. In do lentes me trazem, antes, os caminhos, as lonjuras do hábito, o raio que os parta a todos. Eu quero o meu quintal, as minhas flores, os meus filhos. Ainda não estou lá. Ainda não cheguei.
Vou e venho e volto a ir. Tenho mais centenas de quilómetros desta autoestrada nos pés do que morangos no quintal. Entre o ir e o vir perco alguns momentos de luz: o nascer do sol no fundo dos olhos da minha mãe; a dança frenética do aspirador; a alegria da terra seca quando recebe mais umas gotas de água. Ainda agora aqui estive e logo regresso, sei lá para onde, quando chego ao lado de lá já perco da memória as curvas do caminho. Vou na noção de voltar e volto na noção de ir, é um desaforo escandaloso. A minha avó, que aos 60 anos assentou os seus felizes arraias numa casa no centro da aldeia, e dali não mais saiu, jamais entenderia este vai-e-vem desgastante. Vou cantando desvairadamente playlists de improviso, começo com a Mitski e vou por aí, estando sozinho canto tão alto como se gritasse, e grito como se chorasse, e arranco das paredes da viatura as suas espessas camadas de esperança. É como canta o Tim Bernardes sobre os seus 26 anos: um centro, um norte que eu quase pressinto / que eu perdi ou que ainda vou encontrar. Mas estes são os meus 26. Pertenço-lhes como eles me pertencem, nas leis intermutáveis da idade. O tempo é uma autoestrada feita do pó da passagem. Sou minha própria memória. E cada curva traz novamente um corpo de pó e luz: o meu pai comendo maçãs no alpendre; a minha avó de estacas no chão; o céu imenso azul por cima; as luzes de agosto nas festas da aldeia; a dança frenética nunca acabada do aspirador. Vou ali a Lisboa ver se me ilumina, mas é na Aguda que morro, é no Marão que desfio as minhas dores num novelo, é lá no fundo do Douro que se fecunda a memória do meu avô. Coisas minhas. Os meus 26. Fecho os olhos, pronto para chorar. Mas logo a estrada me chama novamente, preso a esta auto-sabotagem.
na fresta de luz matinal
entre o alvor e o trabalho
sobra um curto espaço
ínfimo espaço infinito
para navegar alguns poemas
dois poemas e meio,
para ser exacto
depois anuncia-se o rolo compressor
de todos os dias
muito calado todos os dias
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