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Sentado na Piriquita, preparado para rilhar um naco de travesseiro, como fizera antes, em longas noites loucas de alta lua:
Estou necessitado de um golpe de asa. Algo absolutamente surpreendente.
O seu olhar era um bocejo, disperso sobre os vidros límpidos da doçaria.
Preciso mesmo de tirar um coelho da cartola. Deixar estes merdas todos de queixos caídos.
E sorvia um pouco mais do seu delicioso café morno. Demorava sempre algumas eternidades a finalizar o café. Usufruía do final amargo, como fizera antes, em longas noites loucas de alta lua:
Estou necessitado de um golpe de asa. Algo absolutamente surpreendente.
Isto dissera encarando uma mulher esguia, muito quente, na iluminação débil do apartamento.
Penso em ti. Tenho a noção subjetiva de me liquefazer. Observo-me num refluxo sobre a bancada da cozinha. É o fim da tarde. Cai no exterior dos vidros uma espécie de algodão doce, flocos de neve, matéria frágil e gélida, porém melosa. Estás sentada numa cadeira a descascar fruta. Olhas para lado nenhum, entre os dedos, milimétrica, uma faca afiadíssima. Uma música qualquer inunda o espaço como uma explosão calma. Interrompes por vezes a tarefa e dizes num tom distraído, alegre: amor. E o meu corpo liquefeito transborda como num copo até junto de ti, recompõe-se muito lentamente, ganha forma e ordem, ocupa o seu lugar doméstico. Depositas na minha boca um gomo de laranja, e logo torno a ser esse gás ansioso que escorre pelo chão, resumido e silencioso como o fim da tarde. Alguns segundos depois, ainda a mesma música, explosão calma, uma miúda pequena surge perto de ti com uma alegria infantil, florida e cheia de cheiros novos. Sorris prolongadamente e dizes: amor, enquanto lhe depositas na boca um gomo de laranja, tosco e muito doce, com a ponta do indicador ajeitando o pouco sumo que escapa pela esquina dos lábios. A tarde vai morrendo tão devagar. Lá fora as árvores, os frutos. Cá dentro a casa.
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