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Quem conhece Serralves orienta-se nos jardins. Com treino, disciplina e algumas visitas, ali estão as nossas mãos com as suas dobras e enclaves, veias espessas de flores e árvores, familiares e acessíveis, fresquíssimas.
As casas do Siza apresentam a sua fachada honesta, ângulos agudos quentes e novas perspectivas frequentes. Cada espaço, um ponto de fuga. A branquitude jura amores a uma falsa pureza que não há.
“Serralves em Luz”, exposição no Parque com desenho de luz por Nuno Maya, patente até dia 17 deste mês, troca-nos as voltas.
Tudo se inverte: os caminhos escurecidos pelo breu noturno tornam confuso o que era clarividente; os rostos-irmãos dos restantes visitantes, que em situação normal analisaríamos com atenção e curiosidade, convertem-se na mais pura sombra, como se por um espesso véu cobertos.
O percurso arranca em modo Twin Peaks. Não estranharíamos muito se o sistema de som emitisse a famosa declaração do agente Cooper: I have no idea where this will lead us, but I have a definite feeling it will be a place both wonderful and strange.
Milhares de pequenos focos luminosos, cirúrgicos, orientam a jornada através de um arvoredo denso, troncos espessos de caruma grossa, nos quais imaginamos a vida habitante do espaço (porque aqui há os animais normais, os insectos próprios, a flora delicada - somos visitantes).
Ao abrir-se a Avenida dos Liquidambares damos graças por faltar ainda um mês até à noite das Bruxas. É que é maior o embaraço de alguém se sentir inseguro no pulmão cosmopolita da Boavista, só pelo ranger incerto de um raminho pisado à sorte ou do borbulhar do próprio chão de areia densa.
No Bosque do Lago recordo Uncle Boonmee Who Can Recall His Past Lives (2010), como se aqui estivesse de novo o vislumbre surreal dos pequenos olhos vermelhos espantando memórias, diagnósticos, dúvidas, arbustos. A água pinta-se de uma imensidão de reflexos, que alcançamos só depois da transposição de um muro de vegetação.
Adiante da clareira se faz clarão, é novamente dia dentro da noite, e o céu tela de uma exposição de nuvens azuis e alaranjadas, friáveis e macias. Rápido se compreende o truque: dois feixes laser à largura da alameda e máquinas de fumo a cuspir o seu bafo químico. O vento faz o resto.
Algures a meio do percurso, somos convidados a atravessar uma das novas e mais fotografáveis instituições do país - os passadiços -, ainda mais modernamente aqui denominada de Treetop. Enormes bolas de luz branca e baça, alcandorando-se entre as copas vistosas, fazem do banal fenomenal.
Resume-se a noite nas vantagens de inverter a perspetiva. Ver no sempre visto algumas novidades, transtornar o conforto no desconforto, passar no mesmo lugar a uma hora distinta, num tempo distinto, em que o mundo se descuida da sua rigorosa farsa ou farda, deslaça de si mesmo a seriedade tensa, e deixa que se brinque nas sombras, deixa que ecoe um certo riso. Talvez haja aí uma hipótese de aprendizagem.
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