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Se removermos da equação os burgueses mais antigos (que têm instalações próprias e funcionários dedicados ao arquivamento e remoção dos lixos), os brutamontes mal-educados (que atiram janela fora, sem vergonhas, os seus resíduos domésticos) e os ecologistas radicais (aqueles que, usando máquinas de compostagem, lá convertem a porcaria em adubo), podemos concordar que toda a gente normal leva o seu lixo à rua.
Foi com esse intuito que avancei nesse final de tarde passeio fora, atravessei a rua até ao caixote do lado de lá, abri a tampa, vigorosamente depositei o saco (o vigor varia), e pus-me a regressar ao lado de cá (então lado de lá, o lado varia). A estrada na pequena cidade é habitação do viajante pontual, cujo ruído se escuta de casa logo para se ignorar a seguir, porque é ligeiro e espaçado, sem dramas. Mais adiante existe uma passadeira, a talvez uns cinquenta metros, portanto, muito longe. Cheio de pressa, abeiro-me da estrada e espero a minha vez: primeiro, um carro idoso vem lentamente na sua respiração fumegante, permite-se a troca de olhares casual com o idoso condutor, um esboço de sorriso cordial, uma espécie de humanidade; depois, já com dois pés no meio da via, oiço gargarejar violento um motor moderno, que me passa a meio metro dos olhos com a velocidade de um alfa pendular.
Estou seguro, pensei. O coração, no entanto, meio a troca-passo, ainda com o reverberar dos pistões, essa tralha. É rara tamanha agitação numa terra onde os carros se calam para ouvir cantar os pássaros. Reabilito a respiração e preparo-me para a travessia, quando novo som perturba o entardecer: uma campainha de bicicleta, daquelas acionadas pela própria força muscular do portador, na compressão dos seus finos dedos enluvados, todo o homem jovem revestido de silicones ou poliéster, essa tralha. Olhando o horizonte alcatroado vejo uma enorme turma de animados desportistas, todos coloridos de amarelos e vermelhos ridículos. Espero largos segundos pela sua passagem, depois confirmo o silêncio, oiço um pequeno passarinho, avanço. Ali ao lado a passadeira virgem, luzidia. Avanço.
Acordei feito múmia engessada, não sei bem se no dia seguinte, com três fracturas expostas, cinco costelas partidas e uma rutura de ligamentos do joelho. Pelos vistos escapou-me do campo de visão um moderno carro elétrico, silencioso, respeitador de pássaros. Filho da puta, pensei.
Levaram-me a casa numa ambulância. Tratamento presidencial, sem queixas. Um homem paga os seus impostos, é certo. Fiquei mais duas semanas engessado, a viver a conta-gotas da generosidade das enfermeiras ao domicílio. Ninguém para me levar o lixo. Uma profunda tristeza, um trinar de pássaros.
Comprei um compostor.
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