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Vou e venho e volto a ir. Tenho mais centenas de quilómetros desta autoestrada nos pés do que morangos no quintal. Entre o ir e o vir perco alguns momentos de luz: o nascer do sol no fundo dos olhos da minha mãe; a dança frenética do aspirador; a alegria da terra seca quando recebe mais umas gotas de água. Ainda agora aqui estive e logo regresso, sei lá para onde, quando chego ao lado de lá já perco da memória as curvas do caminho. Vou na noção de voltar e volto na noção de ir, é um desaforo escandaloso. A minha avó, que aos 60 anos assentou os seus felizes arraias numa casa no centro da aldeia, e dali não mais saiu, jamais entenderia este vai-e-vem desgastante. Vou cantando desvairadamente playlists de improviso, começo com a Mitski e vou por aí, estando sozinho canto tão alto como se gritasse, e grito como se chorasse, e arranco das paredes da viatura as suas espessas camadas de esperança. É como canta o Tim Bernardes sobre os seus 26 anos: um centro, um norte que eu quase pressinto / que eu perdi ou que ainda vou encontrar. Mas estes são os meus 26. Pertenço-lhes como eles me pertencem, nas leis intermutáveis da idade. O tempo é uma autoestrada feita do pó da passagem. Sou minha própria memória. E cada curva traz novamente um corpo de pó e luz: o meu pai comendo maçãs no alpendre; a minha avó de estacas no chão; o céu imenso azul por cima; as luzes de agosto nas festas da aldeia; a dança frenética nunca acabada do aspirador. Vou ali a Lisboa ver se me ilumina, mas é na Aguda que morro, é no Marão que desfio as minhas dores num novelo, é lá no fundo do Douro que se fecunda a memória do meu avô. Coisas minhas. Os meus 26. Fecho os olhos, pronto para chorar. Mas logo a estrada me chama novamente, preso a esta auto-sabotagem.
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