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BELIEVE IN THE FUTURE.

por Pedro Ramos, em 12.09.22

 

Parece agora haver quem olhe por cima. Não escrevo há demasiado tempo. Passei a eternidade entretido com filmes inúteis. Descontinuidades, ruidosas paisagens. Aos solavancos é que se reinicia a frondosa marcha. Retorno à carga, labor e sabor. Na TV um carro funerário, cortejo lento. Pelas matas da Escócia. Há pouco um filme soturno, Sean Connery na sombra, qualquer coisa sobre Outubros vermelhos e outras memórias de contexto. Frias, as guerras e os mapas, as matas densas e a Escócia, Capadócia que que cavamos, tanta fachada. Sempre um alerta nuclear, uma nova ameaça, renovadas maneiras tristes de ir morrendo, não viver ainda. Sempre a merda do futuro. Sempre um desamor de patos, memórias de latas de feijão, todo o raio que me parta. Recebi no email uma análise astral especializada, personalizada para a minha anatomia celeste. Li:

 

BELIEVE IN THE FUTURE 

This is an expansive time for you to let go of any doubts and concerns about where you're heading... 

 

Entrou a chuva de setembro e o mercúrio retrógrado. Há uma pluviosidade fina que aquece por dentro os vidros do carro num bafo marítimo. Recordo a esse propósito as grandes geadas da minha infância, num caminho para a escola a esbarar (escorregar, em transmontano) pelos passeios de cristal. Tem sido um ano cheio de anos dentro. Milhões de turbilhões em corações, ao alto. Ainda agora, luzes de polícia e um tipo de arma branca na mão, ali à porta de casa, flagrante delito no roubo de catalisadores (respeito pelos clássicos). Ainda agora, uma confusão na mercearia, gomas vegan, novos jardins, cervejas a mais no Príncipe Real, um instante virtuoso, milhões de improviso em corações ao alto. Um casal estrangeiro a esganar um violino, num coreto. Era abril. E o sono das avenidas era espástico e alegre, e caminhei milhões de quilómetros para te reaver, limos no fundo de um rio tranquilo. Comecei com entusiasmo o projeto do meu Grande Romance, que entretanto abortei. Depois, comecei com entusiasmo o projeto do meu Grande Romance, que entretanto abortei. Dois abortamentos num só ano, cansaço das minhas vísceras, vergonha dos meus olhos. Vinte e Seis Anos. Believe in The Future. Sempre a merda do futuro. 

O problema, acima de tudo, é a lua em Sagitário. Pop-up astral: 

 

REMEMBER WHAT IF FELT LIKE TO BE A TEENAGER.

 

Um total absurdo. A adolescência devia ser como as dores de dentes: ninguém se lembra do que sente até sentir outra vez. Ao contrário do amor, cuja memória primitiva devia vir connosco, um pacotinho de açúcar na bolsa da camisa para os momentos hipoglicémicos. Não há maior tragédia do que chegar ao fim sem noção do princípio. E por esse caminho, mata escocesa, todas as paixões são uma demência precoce, patologia não codificada. Pergunto pela senhora enfermeira, há algum tempo que não a vejo, as férias desencontradas são sempre um disparate de verão português macio. Dizem-me: está de período de nojo; morreu-lhe um filho. Mata escocesa, densa e escura, agora já não a Rainha mas alguém muito mais importante: o filho da enfermeira. Morreu novo. Período de nojo. Ninguém devia morrer nunca. Nem os filhos, nem o amor, nem os romances. Os filhos de todas as enfermeiras do mundo deviam fazer o que os filhos das enfermeiras fazem: conduzir um seat ibiza, fazer férias em Marrocos, rever o 007 do Sean Connery, comer hambúrgueres em frente à praia, topar miúdas luminosas. 

 

BELIEVE IN THE FUTURE.

REMEMBER WHAT IF FELT LIKE TO BE A TEENAGER.

RIP.

 

 

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publicado às 12:46



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