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Naquela tarde não passou nenhuma caravana. Os cães ladraram, ainda assim. Força do hábito, em matilha, na berma da estrada, acabrunhados pela força de correntes metálicas, exageradamente estenosando os seus pescoços ralos. Uma árvore que cai na floresta, virgem de olhos e ouvidos para analisá-la. O latido ecoa pelo alcatrão, percorre a curva sinistra, perde-se no matagal. Há uma espécie de cabana urbana onde camionistas param para urinar ou para sintonizar os rádios, com rostos equívocos de estupidez. Neste lugar nunca anoitece. É sempre um fim de tarde morno, uma atmosfera que assenta como se fosse uma espuma densa. A única brisa é a dos camiões apressados, alimentados por centenas de cavalos esfaimados. Também um vento pestilento ocorre na abertura das mandíbulas dos cães, cuspindo sons com restos de ossos, metálicos e secos.
Som de passos. Surge uma jovem mulher desarrumada, com um cabelo farto e negro, um olhar cheio de abismos. Traz uma mochila expressivamente grande, para significar que vem de longe. Num ápice se livra da mochila, atira-a com energia para um caixote do lixo. O som abafado, liquefeito, sugere memórias de água. Os cães animam-se, absurdamente loucos. As botas espessas marcam no chão de fogo um compasso castiço. Anima-se também uma banda de loucos pardais, vindos sei lá de onde. A mulher traz um casaco de cabedal muito rafado e uma atitude emancipada e ansiosa, qual personagem de um Varda. É uma ansiedade que não se exprime, mas transpira. O seu rosto é neutro, assustador de uma coragem alta. Aproxima-se dos cães, súbito disciplinados, e afaga longamente cada um deles, ciente das vantagens de um lugar de tarde eterna. Fica-se por ali. Pondera soltar os cães. Vai ficando por ali. Ao longe o som de mais um camião. Pensa: devo ir. Aproxima-se da estrada, levanta o seu braço, depois o seu dedo polegar, positivamente. Força-se a um sorriso exausto. O camião abranda numa chiadeira desproporcional, acaba por se imobilizar, a porta abre-se, um porco suado e meigo diz umas palavras que a mulher não ouve. Pensa: devo ir. E assim foi.
Sans toit ni loi (1985), Agnès Varda
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