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Amor: coisa de que são feitas as coisas. Cito um verso de um poema persa, século XIII, visto na Gulbenkian: Não daria um único fio do teu cabelo por mil pedras preciosas.
Gostaria de aqui escrever com uma outra estrutura. Temo repetir-me. Abuso das comparações. Frases curtas são sempre um bom aliado. Foge-me o pensamento porque a única forma de sintetizar é aglutinar imagens opostas, porém congruentes. A infestação de traças na cozinha. A alegria dos milhões de cães nos miradouros da Graça. O teu olhar profundamente azul.
Algumas coisas são reais, outras nem tanto. Uma crónica é uma forma de materializar uma observação no concreto: algumas referências apimentam a ideia de que o autor é mais do que apenas o autor específico da luz de Lisboa, da culinária nepalesa ou das muitas cervejas seguidas. A meio da crónica pensas em Voltaire e ganhas crédito para mais uma garrafa de branco, fresquíssima.
Um diário é uma iluminação interior, frondosa porque perfeitamente leve e longe de qualquer contexto. Quem escreve não pretende ser a sua própria biografia (há, apesar disso, sociopatas em todos os ofícios).
Os cães da avenida de Roma, que soltam pêlo e energia no jardim Fernando Pessa, tão matulões e engraçados, onde moram? Tenho andado com essa pergunta na algibeira. Inconcebível que alguém lhes devote meio metro quadrado de marquise nos intermináveis condomínios anos 50, muito iguais e muito coloridos. Não há bicho como o cão.
Por outro lado, meio metro quadrado de marquise valerá talvez um milhar e meio de euros. Dois salários mínimos nacionais para o golden retriever ter onde alapar o focinho. A caixa do gato segue o mesmo esquema de valor: uns quilos de areia e um gato para mijar nela. Trinta dias de trabalho: acordar às cinco da manhã, apanhar o autocarro, vir do Barreiro, aceitar a ventania fria da avenida, vestir a farda, ser maltratada pelos senhores doutores que cruzam corredores com a altivez de um sumo pontífice, comer um pão com queijo a meio da manhã, gastar o valor de 3 horas de serviço para comprar um creme hidratante de mãos, regressar aos fumos da lixívia, despegar do emprego, filas para o autocarro, filas para o barco, filas para o metro, filas para a puta que os pariu a todos.
E entretanto o gato da patroa já mijou tudo outra vez. As saudades que tenho do meu homem. De tanto desejo quase o consigo ver daqui, fitando na distância uma ponta do rio, a memória mecânica da Lisnave, o meu homem bom sentado com a jolinha na mão, atirado aos caracóis. Sempre o mesmo, desde os 15 anos, sempre o mesmo tolo bondoso. Não daria um único fio do teu cabelo por mil pedras preciosas. A gente vai conseguir uma casinha só nossa do lado de cá. A gente vai conseguir ser como a outra gente da avenida de Roma, com os seus cães grandes e gordos, o pêlo penteado, o direito à ração.
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