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É apenas um pouco tarde.

por Pedro Ramos, em 24.12.21

 

No decorrer do último século desapareceram do território marroquino dois terços dos seus oásis. Um espaço desértico deveria saber prezar os lugares de água e esperança. Porém se vê ignorando o calor colossal, que vem do sul para arrancar da vida as gotas felizes. Dois terços dos nossos oásis, desertificados, desumanizados. A imagem difusa de dois camelos esfomeados arrastando-se por entre a bossa das dunas. Ao caminhante perdido poderá dizer-se: vens com um século de atraso, e mesmo assim a memória da água não mata a sede. 

Em "Atlantic", a segunda faixa do belíssimo novo álbum dos “The Weather Station”, dizem-nos: Thinking I should get all this dying off of my mind / I should really know better than to read the headlines / Does it matter if I see it? / No really, can I not just cover my eyes?. 

“Ignorance” é um instrumento virtuoso de evangelização para a causa do ambiente, sem nos perder nas ondas ambíguas do moralismo selvagem. Para essa relação meiga, quase terapêutica, contribui a voz doce de Tamara Lindeman e uma narrativa que se universaliza a partir da experiência íntima: este é o meu mundo, o meu sofrimento, o meu copo de vinho. E se se poderia atribuir a esta jogada retórica o risco do egoísmo, facilmente se descarta a suspeita: I know you are tired of seeing tears in my eyes / But everywhere we go there is an outside, segreda-nos em Parking Lot, para que saibamos ler na emoção uma realidade ampla de oásis apagados e espécies extintas. 

Numa altura em que já todas as pessoas honestas podem aceitar que há aqui um problema, as facções agridem-se na tentativa de digerir o maior dos desafios, o de desatar este nó, reorganizar este novelo, harmonizar a nossa presença humana na face do planeta que, muito antes de nós, aqui se encontrava criado.

É que se alguns apostam todas as fichas num Deus tecnológico, outros apostam todas as fichas num não-Deus castigador, pronto a escrutinar cada ação individual, pronto a levar-nos para o mais ateu dos confessionários e ajoelhar, orar, repetir. 

É possível que este álbum seja uma pista para desdobrar o enigma. A música é leve, agradável, pop. Acompanhou-me enquanto trabalhava numa tarde fria. Não me agrediu; antes embalou. E no entanto lá se implantaram no cérebro profundo as ideias do ambiente, o medo de perder a beleza (de que se acabe a música), as dunas salgadas com os seus camelos desérticos e nenhum fremen. Talvez esta revolução ecológica que o tempo atual nos exige possa encontrar algum caminho de estilo no conservadorismo suave, um contrabaixo discreto que agita o coração enquanto movemos o corpo, lento e contemplativo, num copo de vinho com vista para o fim do mundo. 

Há o tempo da guerra e há o tempo da dança. Nenhum soldado adormece nas terras áridas sem o conforto de uma melodia assobiada entre dentes, no vai-e-vem de pensamentos soltos como areia fina. 

Os tempos não vão bons para nós, os mortos. / Fala-se de mais nestes tempos (inclusive cala-se). / As palavras esmagam-se entre o silêncio / que as cerca e o silêncio que transportam, escreveu Manuel António Pina, dedicando-nos no ano inicial da liberdade o alerta agridoce de que Ainda não é o fim nem o princípio do mundo calma é apenas um pouco tarde.

O mundo que, por sinal, não é uma coisa que se salve, nem consta que tenha expressado essa vontade. O mundo é uma bola de vida que Deus criou por motivos ocultos, talvez para se divertir ou apenas para ver o que acontecia (aqui arrisco intuir o sentido a partir da Sua mais aproximada criação: os cães e as crianças). O que é urgente de facto é resgatar a humanidade, ou ainda mais especificamente esta humanidade, concreta, pela qual nos encontramos perdidamente apaixonados - a alegria das festas, o sabor dos poemas, a água pelo rio abaixo. 

A ética está no modo: o que ficará de humano quando as luzes se apagarem e tudo for metálico e inteligente, censurado e hermético?

Temos escrito muito sobre gritar fogo numa sala de cinema, mas muito pouco sobre como agir quando uma sala de cinema arde. O meu reino pelo Cinema: Paraíso.

 

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publicado às 12:04



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