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Fairy tail, ressurreição.

por Pedro Ramos, em 17.04.22

 

Reverendíssimo, 

Pequei. Foi num instante e já mal me recordo. Sei que estava um pouco inebriado, cheio de sono, muito mal disposto. Algumas luzes brilhavam intensamente, havia os olhos dela na sombra. Não consigo explicar o que aconteceu. 

Sabe, sempre fui crente em Deus mas tenho ignorado as maiúsculas. O estilo é que é o meu maior pecado. Adormeço na sintaxe e acordo com arrepios de dor neuropática na ponta dos dedos. A minha impressão digital tem tanto sono dentro, como eu naquela noite. 

Li que hoje é dia de renascer, como Jesus no seu tempo. Entendo renascer mais como dar à tona da água depois de um mergulho profundo. Estar vivo ou estar morto, tanto faz, a chave mora no processo.

Na adolescência passei muitas tardes na barragem. O cais era um local misterioso onde os corajosos iam mergulhar na água muito fria e muito funda. Eu nunca tive coragem nenhuma, mas tenho usado a farsa como uma medalha e um bilhete de entrada em sítios obscuros (como aquele onde, reverendíssimo, pequei).

Uma corrida na plataforma sem escorregar e depois um salto para dentro da água negra. Os peixinhos abanavam no fundo os seus pequenos corpos esguios, e os corpos adolescentes suados e tolos eram parafusos em queda livre. À altura desconhecia as leis da física, ainda mais as outras.

Recordo bem uma certa ocasião, repetição do processo, em que talvez um excesso de ímpeto, um balanço alegre, ou apenas peso a mais, induziram no salto para a água uma tal energia que, bem lá dentro do aquário fresco, senti os meus pés imprimirem no chão de lama uma marca vigorosa. A força justa para sentir as roldanas dos calcanhares sustentar o impacto, estremecer um pouco nas barbatanas de um peixe grande, um grande grande medo. Deus como fiscal finalmente percebendo que é inválido o ticket

Podia ter sido dramático. Podia ter ficado por ali a minha história pessoal: adolescente encontrado morto na barragem o cais é um perigo toda a gente sabe é filho da professora muito bom moço muito inteligente ainda tentaram manobras de reanimação mas nada a fazer.

Já não teria conhecido a dor da rejeição, o sabor dos pastéis de Belém, a luz de Mafra, a textura de um pequeno pecado, reverendíssimo, foi apenas um pequeno pecado, uma mágoa, uma mancha no colarinho da camisa, a minha mãe com a sua escova a esfregar com muita energia uma gotinha de fairy resolvia em menos de nada todo o problema. 

Jesus morreu na cruz e sofreu tanto. E era quem era. Como se explica tudo isto? Ele andou por cá, pisou este chão, bebeu deste vinho. Depois foi, depois voltou, depois espartilhou-se pelo universo inteiro, enchendo de riso e luz cada momento. A morte não é barreira nenhuma. É uma lâmina, um filtro, uma película, uma camada: daqui para ali é um pequeno passo, um saltinho ingénuo, uma alegria de peixes. De lá para cá não há mais do que um suspiro, pulmões cheios de ar. Governa-nos o sangue. 

 

800px-The_Garden_of_Earthly_Delights_by_Bosch_High

O Jardim das Delícias Terrenas, Hieronymus Bosch

 

 

 

 

 

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publicado às 14:45



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