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Fixa na infância o teu olhar sagrado, a ver se abrimos braços infantis junto ao escorrega, o teu pai como certeza, agarrado ao corrimão com as âncoras da sua esperança. Luminoso espaço onde as amarras são nenúfares doces, onde o peso é apenas a ideia do chão. Nenhum homem vagaroso circunda o parque, nenhuma antiga mãe o contempla, desfeita de saudades em seu ventre oco, nenhuma noite chegará depois do tropeção, dos joelhos esfolados, da choradeira animada: vejam todos, sou criança e sofro, o pai ainda cá está, agarrado também ao corrimão do baloiço, vai e vem do meu filho que já não chora, a tarde entardecendo, a noite tardando, uma brisa sempre cheia de respirações e silêncios. Escorre do joelho rasgado algum sangue que a criança recolhe na ponta do dedo, leva à boca para provar, assusta-se no travo metálico: este é o seu sangue, o seu olhar sagrado, a ver se abrimos braços infantis junto ao escorrega, braços fortes de pai que nunca morre, pequenas mãos de luz estendidas como velas na direção do carro, o apertar do cinto, todo o conforto. Uma casa para onde regressar, e um pai nela, e a noite final rodeando a vedação, infiltrando-se nos poros da madeira, roendo as maçanetas das portas, cuspindo pelos buracos das fechaduras, desarrumando os pratos e os copos no lava-loiça, trocando as escovas de dentes, os sons e as ideias na cabeça de um pai confuso num novelo de trabalho, listas de compras e dívidas. O miúdo chora noite dentro, queixa-se das dores de crescer, mas a sua flor brota ainda assim, todos os dias um pouco mais, cresce sofrendo como as jóias puras de brilho. Arranca no escuro a crosta inflamada dos joelhos em chama e a luz da dor ilumina o caminho de fogo, como Moisés abre o seu trilho santo desviando contrariedades, sem que ninguém se aperceba, sem que ninguém registe em espessos tomos a sua evolução feliz.
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