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Mães e aves.

por Pedro Ramos, em 09.02.21

 

Há sempre um lugar onde o medo faz sucumbir os alicerces dos homens, e aninhados escrevem em letra ilegível uma carta às mães distantes. Num buraco qualquer do fim do mundo, onde a vida avança como um filme antigo, entre sépias de vinho e sépias de medo, onde o chão pavimentado da floresta é o sangue de filhos de outros, a caneta impura segue o seu caminho triunfal, o único triunfo. Estou cansado desta merda, mãe. Escreve o soldado. A farda que tresanda, o suor perpétuo, o pânico de fechar os olhos. 

Dizemos: há sempre um regresso a casa. Mas queremos dizer: há sempre um regresso à mãe. Ao lugar germinativo de todas as ideias, os primeiros passos, as centenas de roupinhas alegres, o suspiro da primeira palavra, a amargura envergonhada de dezenas de mães atropelando-se na escadaria da escola primária: o teu primeiro dia, filho, o dia em que imaginei que te largava, mas não largo nunca, sinto os teus dedos no sofrimento da noite, sinto o calor ameno dessa vela que te ilumina a página, e sorrio ao lembrar a tua camisola marcada pelo giz do quadro, os éles, os pês, os quê-de-quá-quá repetidamente desenhados num caderno a linhas finas.

E hoje nada disso importa para lá das palavras e dos sentidos, que se foda toda a matemática, eu quero a minha mãe aqui, nesta floresta endiabrada de vozes mudas, de ecos sem vozes, de sombras apenas. Diz o soldado: eu não posso morrer aqui. Eu tenho de aguentar as minhas forças, a minha garra, o meu sentido visceral, o meu cérebro reptiliano: eu quero morrer longe deste pântano salgado, deste retângulo odiado, desta bandeira que me cravaram na espinha até que esquecesse o que é andar, pensar, ser lúcido. Eu quero ser novamente eu, quero involuir para dentro de mim mesmo, quero encontrar o meu casulo humano, terno. 

No silêncio da noite alta, perdido do mundo, o soldado orienta os seus sonhos ainda pela última réstia do braseiro. Quase finando, consegue-se ainda associar os gritos das aves ao movimento das asas, e esse é o estreito sentido único do momento. A vida inteira encurralada num vale sinistro. De nenhuma ordem me alimentarei, pensa o soldado. Sem nenhum desejo de vida. A mãe dos meus filhos será também a minha mãe, pensa o homem sem nunca admitir. É essa a única herança da guerra, o passado que pintaram glorioso, as conquistas que foram somente perdas. Matei um preto, e para quê? 

Lá longe a mãe aperta contra o peito uma memória esborrachada. Nunca tirámos a justa fotografia. O coração sucumbe um pouco mais, sempre num limite qualquer, afastando barreiras que são os dias, as horas, os minutos. Ninguém pode viver anos numa urgência. Porém, podem as mães. Como aves ansiosas cruzando os céus no breu profundo, gritando o nome dos filhos numa língua morta, agitando a ramagem. A mãe diz: meu filho, onde houver céu eu estarei lá. E o filho quebra num choro lento, as lágrimas apagam a vela, e a noite inunda o universo, como se fosse um abraço. 

 

paula-rego-18.jpg

Les Planches Courbes III, Paula Rego

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publicado às 19:21


1 comentário

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De Zé Onofre a 09.02.2021 às 20:06

Em nome de um passado glorioso feito de naus e caravelas e que em caravelas e naus se perdeu.
Em nome de um Portugal uno e indivisível do Minho a Timor.
Em Nome de uma Pátria que não se discute.
Em nome de interesses que se ocultam por de trás daquelas frases proferidas em estilo severo e pleno de certezas.
Zé Onofre

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