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O amor evidente.

por Pedro Ramos, em 04.12.20

 

Não há vergonha nem cansaço. Apenas algum medo. A vertigem que nos une num abraço se desfará logo após num desenlace terno. É feliz ser humano: a arte de ser-se é a mais árdua das concretizações. É preciso viver, farsa após farsa, a vida de outros, despindo-se as vestes numa noite fria, até se encontrar na carne dilacerada qualquer coisa com o aspeto, o cheiro, o sabor de uma verdade. Quantos não ficam perdidos nesse caminho de sacrifício, no elã da preguiça, na volúpia sedosa e lânguida de acreditar nossos e inéditos os carreiros já trilhados, o inocente espanto repetido de florestas habituais. 

O amor - é sabido -, cumpre sempre todos os propósitos, é contraditório e íntimo e selvagem, e é também a superfície delicada de um pêssego ou a pele de uma criança. Na arte de ser-se, também o amor cumpre múltiplas funções, e constrói acolá o que aqui destruiu, remenda amanhã o rasgão de ontem. Amar é brincar com o tecido do mundo: furar cortar picar abrir queimar mergulhar fingir esquecer florir cair: o tecido do mundo. O amor é que abre as janelas da casa, o amor é que risca o chão com garras de gato, o amor é que molha os campos à espera de alimento, o amor é que entra pelas mulheres adentro e faz delas um grito de amor, um metal cintilante a rebentar de amor nos braços. O amor faz por inventar-se, dá-se à luz. O amor existe apenas na invenção da casa, na busca do regaço. É evidente que o amor é evidente, fugaz e permanente, os pilares de uma casa quebrada sob o peso das suas memórias. O amor é que ilumina as ruas estreitas por onde se movem, curvilíneos e generosos, os agentes secretos do amor. Deixar-se entrar no amor significa assinar um contrato, e toda a força do contrato é a cláusula da sua destruição. É na morte que se cumpre a promessa do amor.

Farsa após farsa, ser-se é também descer as escadas recônditas da identidade até ao amor. Despirem-se as farsas é a estratégia dessa aproximação. E, no entanto, toda a vida é a experiência paradoxal de novas roupagens de amor. Antes de nascer um filho, pai e mãe desenham ao detalhe novas camadas sob as quais depositarão a vida. Crescer é deitar fora esses lençóis antigos, e por isso crescer é matar o pai e a mãe, substituir a memória por novas arcadas e abóbadas de uma construção involuntária: a catedral-futuro, a que também podemos chamar filhos, e que é, antes de tudo, o amor.

Ninguém envelhece nunca. A idade é a mais antiga desculpa do amor, recurso de estilo, artifício letal. As rugas na pele são a prova da passagem sob a ponte, não do tempo, mas do amor. Por isso, também envelhecer-se é ser-se muitas vezes, repetir-se atabalhoadamente, numa tentativa de se repetir o amor de que há memória, uma sombra que consome o objeto até lhe tomar o lugar, e o reflexo é, no final, uma imagem disforme, translúcida, débil do próprio reflexo escondido.  

Como nas artes do campo, lavrar e arear e arrasar a terra para destruir o velho-amor, e deixar no vazio a esperança de um recomeço fértil. Ciclo perpétuo de uma consciência individual repetida, isto é, universal: a ideia de se acordar, a ideia de se deitar fora esses lençóis antigos, a ideia de construir o novo-amor no lugar do velho-amor.

O espaço é exíguo. Precisamos ser brevíssimos e generosos: ceder o nosso modesto excesso a quem possa vir ocupar as frestas de um coração vazio, dividir condimentos de uma refeição serena, sobrepôr raízes na mesma terra fresca. Podemos concluir que o amor é todas estas coisas: o ser-se profundo, o adicionarem-se e removerem-se os lençóis antigos, o substituir-se sempre amor por novo amor, o envelhecer. E também vemos no amor uma gloriosa poupança de espaço num mundo que não nos pertence: as amplas cidades escassas, de luzes esparsas em janelas solitárias, talvez coubessem todas em meia dúzia de quintais de amor. O amor é um abraço e um laço e um cansaço que se aperta até ser um só, que se espreme e torna esguio entre os dedos geminados, cujo único lamento é o de não poder resumir e sumir o universo inteiro num pequeno berlinde pueril que se amanhasse no bolso das calças de um deus qualquer. 

 

"Personagens duma história de amor", 1960, Chave, colagem, esferográfica, guache, osso e porta-chaves sobre cartolina. Doação Cruzeiro Seixas, colecção Fundação Cupertino de Miranda


"Personagens duma história de amor", 1960, Cruzeiro Seixas, colecção Fundação Cupertino de Miranda

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publicado às 23:03



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