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Herberto Helder quis abrir o seu "Os Passos em Volta" de forma marcante, e conseguiu. A frase circula habitualmente pelas redes sociais porque é simples e forte, e tão vaga que pode qualquer um enfiar nesse sapato o seu pezinho arrebitado, sem represálias ou direitos de autor, só para sentir por um segundo a textura dos gigantes. "Se eu quisesse, enlouquecia. Sei uma quantidade de histórias terríveis."
"Se eu quisesse, enlouquecia" é uma forma brevíssima, muitíssimo eficaz de empoderar quem lê, que domestica o medo abismal da loucura, dá à fera as rédeas do seu castigo. Sempre me interessou imensamente mais a frase que surge logo abaixo, discreta: "Enfim, às vezes já não consigo arrumar tudo isso." Há aqui uma franqueza diferente, um baixar de ombros, um enfim.
Têm sido espessos os dias, numa desarrumação gloriosa. Os meus, pelo menos. O carro a abarrotar de malas e sacos, país abaixo, de encontro a uma meia dúzia de metros quadrados onde ainda habita um espírito alheio.
Reconheci-me primeiro numa certa camaradagem com as pessoas anónimas, sobretudo a sua forma de andar (débil, militante, honesta). Depois asfixiei-me em passeios curtos, destruídos e dominados por automóveis. Antes de tudo, senti-me longe.
Pessoas diferentes, diferentes pesos nas partículas do ar. Um transmontano ganha competitivamente nesta análise, diga-se, atmosférica. A vida obriga-o a variações importantes na altitude. É, isolado, o seu coro alegre, reverberando solene nas abóbadas infinitas da planície.
Internou-se a minha avó na casa de repouso. Como se todas as outras casas fossem para o desassossego, para a agitação. "Não é um lar: é uma casa de repouso", repetimos muitas vezes para tentar começar a acreditar, e para que ela também possa um dia acreditar, chave para uma um-pouco-menor infelicidade. A vida é mesmo um balão que se insufla na justa competência dos pulmões para depois vir, devagar, minguando até tocar a terra. Parece-me a perfeita metáfora. Agarro-me ao estilo como a um bote salva-vidas.
Oitenta e seis anos. Sessenta e tal anos de solidão. A ordem dos pratos, dos potes, os degraus das escadas, a memória do corpo impressa no colchão, o armário desorganizado pelo esquecimento, as fotografias de filhos e netos, um pacote de bolachas, um pano de renda, as plantas sequiosas, o velho diospireiro.
Uma vida que se transplanta. A imensa parafernália de vasos comunicantes, redes sociais, antigos hábitos. Casa é o lugar que se conhece no escuro, de olhos fechados.
Agarro-me ao estilo como a um bote salva-vidas. A lembrar o último filme de Wes Anderson, The French Dispatch (2021), mais um exercício de exibicionismo visual abusivo, conservando a sua (bem mais interessante) unidimensionalidade. Todo o filme se exibe como obras numa galeria ou um fresco inamovível, pintado nas paredes de uma prisão.
A obra procura dividir para reinar. As habituais ideias de simetria permanecem, mas cedem espaço a longos períodos de gravação a preto e branco, possibilitando atingir uma distância que as camadas pastel não permitem. O maio de 68 vê-se reduzido a um caricato jogo de xadrez, a gramática vê-se reduzida a um artifício do sempre utópico jornalismo lento, a culinária (ou seja: França) vê-se reduzida ao prazer do envenenamento, o negócio da arte vê-se reduzido ao negócio da arte: reduções que não menorizam, antes sintetizam, episódios na medida da importância das páginas de um pequeno jornal moribundo.
Regresso a Herberto. "Bem, não aguentamos a desordem estuporada da vida. E então pegamos nela, reduzimo-la a dois ou três tópicos que se equacionam." Crónicas de uma super-unidade estética a que aspiramos, mais como método de sobrevivência do que como objetivo real.
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