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Claro que foi como regressar a casa. Quero dizer: um momento sublime, uma descompressão. O corpo, enfim, abalado na jangada do sucesso, com a fúria pétrea de ter partido e com a sede original de ter chegado. Sair do conforto tomando logo nota da falta que fará, do frio que sentiremos gelar a pele quando, dias adiante, nos vier a saudade trincar os dedos mínimos dos pés, pedir alimento, e farta for a fera que nos maça, num casarão quente.
Claro que o amor é uma missão. Quero dizer: embarcar na jangada do outro, com a nossa pequena mochila às costas. Meia dúzia de memórias e objetos escolhidos à pressa, antes de sair de casa, e a certeza de voltar logo logo quando o frio apertar e as feras forem famintas.
Mas não voltamos nunca: a casa morreu entretanto, e o gato que trepa as nossas pernas assustadas não nos conhece o gesto. De pêlo eriçado trinca-nos a carne e olha-nos nos olhos, como que perguntando: que carne é esta?
E nenhum novelo de memórias, confusamente amanhado no fundo da gaveta, trará o que perdemos na viagem. Nenhuma solidão mastigada pelas articulações laboriosas da razão recuperará das paredes da casa o calor-amor original, de quando em miúdo a gente se encontrava a trocar presentes no dia em que Jesus nasceu, e a noite inteira era ansiedade feliz. Uma ansiedade irrepetível. O jeito doce dos adultos, que sabiam já nesse tempo como era amarga a partida, e que a pulso haviam erigido uma casa-nova, na esperança de fazerem dela a casa-mãe. Um eterno fracasso anunciado.
Precisei de ir abraçar-te. Claro que foi como regressar a casa. Penso: nunca deveria ter partido. E o meu corpo reconstrói-se, moroso. Os meus cansaços diluem-se num manto fino, elástico e transparente, os meus cabelos brancos juntam-se a esse tecido etéreo. E pegando nele, apressadamente, a minha mãe coloca-o a lavar. E eu fui eu outra vez.
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