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Infinitas são as formas de avançar para o papel, como de avançar para a vida. Um dia novo é página feita a contragosto, chega sem pedir licença, e a tinta lá vai permeando os carreiros como no tempo em que, de sacho em riste, cavava os trilhos da água na herança do poço. É preciso aprender a partir sem plano. O risco é baixo. Apenas um texto sereno, como as ruas antes de haver prédios e o chão antes de haver ruas. Não é o mesmo que partir num barco. Não há intempéries na contemplação. Existem, no limite, sobressaltos. A emoção trava o peito, esquecemo-nos de um batimento, algures perdido na tira de ritmo. A respiração aprofunda-se, e lembramo-nos de que os pensamentos eloquentes estão todos dentro desta caixa de osso. É claro que existe deus. É claro que há demónios e outros absurdos representantes dessa verdade infantil que é o Mal. Há poucas palavras para o amor. O amor tem um arsenal discreto. Não sobrevive em alto mar. O amor é o que acontece nos intervalos do mal, como no tempo em que a minha avó virava costas e eu pegava na mangueira, dirigia-a para o sol e dançava no festival chuvoso da alegria. Estas palavras não significam nada. O seu sentido, se existente, provém do encadeamento escrupuloso e rápido. Estou construindo uma linda escadaria a cada passo dado, e no momento em que o pé pisa o degrau, logo outro nasce. A terra molhada lá se lembra do pé de feijão, que vem dizer adeus à cabeça do húmus, como quando, na escola, experimentávamos a excitação de ver nascer raízes no algodão humedecido. Ou como no dia em que entrei no teatro anatómico, aproximei-me a medo de uma mesa de alumínio, e segurei com as minhas próprias mãos o crânio de um homem morto, com seu conteúdo apropriado, e pensei: são isto as ideias.
Pieter Claesz, Skull, Lamp, Book, and Pen, 1628.
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