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1. Foi ali como se nos encontrássemos na estrada ampla: era um martelo pendente sobre a nossa cabeça, morte anunciada. A foice, por sinal, sempre uma esperança e uma condenação ao degredo, sempre milhares de futuros a nascer e a morrer na mesma hora, como era esse amor e a lucidez de te falar para te escutar depois.
2. O sol intenso fez-te do cabelo ruivo uma espécie de miragem: a memória agarra para largar depois, fiel à natureza circular da vida urbana. Eu cansado e macerado de bebida e algazarra e tu serena a ver passar as horas, certa e alta e sem nome. Sei que virá a festa para acordar de vez a lucidez ofuscante, a explosão de cores, a birra dos corpos tensos quase a aceitar dançar, a gloriosa revolução de estarmos juntos. Nenhuma avenida aceitará o teu nome. Será bonito morrer para acordar no fim.
3. Pausa para café. Reparo que não morro ainda, reparo que me prolongo pelas avenidas dos dias. Se cambaleio, é mesmo por estar ainda vivo. Existe uma certa beleza. Amanhã vou ao cinema, como em todos os amanhãs. Ser solidário e simples, sem deixar de rasgar. As fibras dos dias são elásticos num jogo de mãos e dedos entrançados, um novelo de pastilha elástica que alguém esqueceu num sonolento canto da boca.
4. Um amigo trouxe um tabuleiro de xadrez que dispôs sobre a mesa da sala. As peças adversativas pacientemente aguardaram a nossa atenção. Mas depois de duas ou três jogadas tortas decidimos ir passear ao sol, esquecer toda as leis da táctica e deixar a arte da guerra para quem tem especiais ambições políticas.
5. A luz elétrica de Saigão não tem vergonha do barulho do mundo. É bom saber chorar-se e pensar-se: o indivíduo, a comunidade, a narrativa larga. Uma no cravo, nenhuma ferradura. A grande história da liberdade é libertarem-se os povos, um após outro, das amarras espessas e pegajosas da sua própria sombra.
6. Algumas crianças nasceram em países do continente africano e agora moram em Lisboa para serem felizes. O mundo é um lugar muito grande, mas também é um lugar muito pequeno. O planeta não é uma superfície plana, mas também não é uma curva perfeita. A única curva perfeita mora no teu sorriso. Sento-me um pouco junto dos adolescentes irrequietos para falarmos sobre vacinas, isto é, sobre doenças que não são: explico algumas ideias e oiço muitas mais: uma tia que morreu longe, uma febre inexplicável, lendas maravilhosas. Tenho alguma dificuldade em assumir o meu enorme amor por esta humanidade. Tenho dificuldade em aceitar que talvez haja em mim um impulso de ida, novo e assustador e denso: e se eu, simplesmente, fosse?
7. Há muitas pessoas boas. Devo ler o Cardoso Pires.
8. Estava tão feliz naquela noite. Era uma noite que uivava um bafo de erva. Uma nuvem espessa em cima da tua cabeça. Disse-te olá e não foste gentil. Uma nuvem espessa em cima da minha cabeça.
9. Encontrei uma amiga que sei que não imagina que eu a sinta como uma amiga. As coisas são sempre uma máquina de fazer problemas, mas é dos problemas que emergem, por vezes, como borbulhas vulcânicas, as alegrias. Há linhas nas mãos que são como contornos de montanhas. Há pessoas que conhecem a alegria de subir o Marão. Há dedos de conversa que fluem tão lentos e lindos que poderemos acreditar ver neles a seiva de uma árvore ainda por nascer. Reparo que não morro ainda. Amanhã vou ao cinema.
Salgueiro Maia, por Alfredo Cunha
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