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Vortex (2021), de Gaspar Noé, é um filme que deve ser visto. Não como um drama claustrofóbico e hiperestilizado - que também é verdade que é -, mas como um documentário honesto sobre o final da vida.
A comparação inevitável com Amour (2012), do mestre Haneke, à semelhança da maioria das comparações, diminui em vez de acrescentar. Amour é uma obra de terror psicológico que parte da vertigem da morte mas explode na vontade da morte. Vortex é uma incursão no realismo profundo da demência, isto é, a obscuridade da obra deriva da negrura do tema. A estes dois grandes filmes poderíamos acrescentar The Father (2020), que se alimenta do génio de Anthony Hopkins para produzir um filme médio.
Verosimilhança será a palavra justa para Vortex. O olhar ausente de Françoise Lebrun, a forma como deambula perdida pelos corredores do supermercado, justifica já o filme. Depois os pequenos tremores, o choro fácil, a flutuação nos níveis de consciência e ligação à realidade são mais detalhes que ressoam no coração de quem conheceu de perto a doença.
A história perde consistência com os desvarios narrativos da figura do filho, o que parece intuir uma errada ideia de que o drama íntimo homem/mulher não seria suficiente para encher o filme. Nos momentos da morte, Gaspar Noé não resiste ao pecado do excesso, e ultrapassa a linha subtil que até então, pela primeira vez na sua carreira, procurara construir.
A presença da demência no cinema não é nova, mas o seu surgimento como facto natural é fundamental para a função social da sétima arte. Talvez estejamos distraídos ou somente em negação, mas o futuro da nossa sociedade é o esquecimento. E perante a debilidade dos mais velhos, cada vez em maior número e com necessidades mais complexas, o futuro também terá de ser o cuidado, a compaixão. Não vamos resolver nada com chips mágicos ou fármacos milagrosos. Segurar a mão de quem sofre, apaziguar a confusão existencial, estimular a alegria de um sorriso: isso nos ensina a humanidade da tela, como que abanando a numbness profunda de uma civilização em suspenso, ignorante de si mesma.
A tragédia é a perda do amor, e a maior das tragédias vem de amar profundamente o estado de ser triste. O rigor permanente das imagens, cirúrgicas e escorreitas, austeras, impõe na narrativa a severidade do seu protagonista. Estóico perante a dor, depende da dor para se reconhecer estóico. Apropria-se da dor da morte alheia quando o seu próprio drama pessoal termina, a ponto de visitar o pai de uma cliente na sua morada final, carregando flores. São quebradas todas as barreiras profissionais em nome de uma vontade desesperada de chorar, de dramatizar, de sentir. A manhã junto à esposa regressada, sã e salva; a constante presença do mar, do sol intenso, da atividade física, da vitalidade; tudo isto é contrário à vertigem de quem se apaixonou pela antrolopogia da tragédia, de quem se viciou na mordedura rasteira do santuário de Crise.
"Esqueci-me de quão bom isto é", comenta em fundo negro, com a gritaria a capella habitual, ao induzir da mais dramática forma o choro, de que jura depender a sua fisiologia. O corpo, que se movimenta roboticamente, parece uma máquina de chorar. O pai de família severo desconstrói os seus papéis sociais, a sua ficção de género, e despe-se até um puto mimado, irritado pela privação do bolo de laranja da vizinha.
Sem pôr de parte o fato negro, industrialmente engomado, o advogado (Yannis Drakopoulos) agarra-se à maravilhosa cadela como um desalmado durante toda a trama, psicologizando a sua narrativa. No desespero final da sua irrelevância, não hesita em converter o amor em perda, apenas para escrever uma nova tragédia. Um filme que só na última curva abandona a estética ampla, moderna, a rebentar de sol, para se desprender num pranto de chuva e sangue.
A felicidade voltará para assombrar-nos, ressuscitada do Egeu profundo.
Oiktos (2018), Babis Makridis
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