Morrer é apenas uma formalidade. Os trâmites demorados e complexos começam a ser tratados previamente: alguns morrem semanas ou meses antes, outros demoram séculos.
Quem morre de doença vai cultivando agregados celulares atípicos, tecido inflamatório, bichos estranhos. O último suspiro é uma rúbrica na última das páginas de um contrato solene que estabelecemos connosco mesmos: a certeza da nossa própria finitude.
Quem morre por acidente ou infortúnio também cultivou nas leis do azar o seu substrato produtivo. Os hábitos do álcool, ou da impulsividade, ou da desatenção são sempre fruto de défice ou excesso de educações íntimas, jardins familiares. Há quem saia disparado de casa para ir comprar tabaco a meio da noite, única e simplesmente porque o seu bisavô decidiu, um dia, saltar nu dos píncaros para a ribeira da aldeia, quebrando a espinha. A coragem de fazer o que ainda não foi feito, a ousadia de “provar um ponto”.
Há quem tenha começado a morrer séculos antes de nascer, no calor insuportável das fazendas e herdades de outros. Há quem chore com picadas de mosquito, golpes de chicote no lombo nu, campos infinitos de aspeto vibrante na turbulência da lavoura. Mortes ensaiadas milhares de vezes e ritmos sonoros profundos que trazem o sabor da fertilidade adiada. A voz que, como punho, se erga hoje entre palavras de ordem cumpre mais um passo no legado dos mortos anónimos, sem voz nem corpo próprios.
A morte também começa dentro, no desequilíbrio neuroquímico, na vertigem de um abandono por entender, em mutações genéticas estocásticas. Entre ondas de sufoco onde braçadas frágeis se desvanecem como espuma, a água atrevidamente convida ao desnudar da alma, a que fiquemos mais um pouco. Pode ser sedutora a voz da morte num jogo de xadrez involuntário, de que fugimos.
O eco já não morre cedo quando enfim trazemos no coração pesado a desesperança de futuros impossíveis, abalos sísmicos internos e pernas que tremem como varas verdes. A morte inscrita a ferro quente na memória de gerações, do mesmo modo que os namorados obrigam troncos de árvores a paixonetas simbólicas e golpes de arma branca.
Cortar profundas as veias da terra com um canivete, e ficar observando o sangue negro inundar o imaginário popular da morte, repetido na TV para que ninguém perca a oportunidade de se confrontar. Espelho de água remexido pela ventania ocidental até quebrar a imagem do que somos, dos sonhos que tivemos, da luz que um dia iluminou um caminho.
Mas nenhum Maomé virá abrir as águas. De nenhum deserto fugirá a memória. Seco ficará o corpo na gravidade da queda. E o eco reverberará pelas paredes do universo, montado em quatro cavalos, e morrerá jamais.

Maria Helena Vieira da Silva, Transparence, 1978