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Já vivemos mais de um ano de pandemia e a pergunta mais importante mantém-se: como é que podemos motivar os comportamentos da população no sentido de optimizar o balanço entre a atividade social e económica e o contágio?
Os velhos manuais de comunicação de crise dão luzes importantes: a população adere melhor quando a decisão é bem comunicada, de forma que toda a gente entenda; é benéfico que se explique o racional que motivou a decisão, e não apenas a decisão; é proveitoso que o cidadão se sinta integrado e respeitado pela escolha tomada, numa lógica de articulação dialogante, sem rejeições ou conflitos; produz melhores resultados uma comunicação dirigida à comunidade, que nos convença de que as ações propostas beneficiam os nossos amigos, a nossa família, o “outro”.
Ora, não é difícil perceber que estes princípios são postos em causa no momento em que se aponta um bode expiatório. Os culpados alinham-se, vão alternando, numa procura incessante por alguém que carregue nos ombros o peso da desgraça coletiva. Não será, porém, polémico dizer que o “português médio” é um cidadão decente, não quer sofrer, não quer ficar doente, não quer ver ninguém ficar doente, paga os seus impostos, está disposto a ceder alguma da sua liberdade em troca da segurança e da saúde (apenas até um certo ponto, também ele de bom senso). Acima de tudo, a mais portuguesa das atitudes é a de nos julgarmos os únicos cumpridores no meio de uma sociedade de aldrabões e safados. Uma ficção que nos conforta, e bem precisamos de um conforto no meio da tempestade.
Somos também bichos modernos, à espreita de imagens fortes, sugestivas e rápidas que nos impressionem. O nosso limiar coletivo de estimulação tem aumentado, num mundo onde quem mais grita, mais ganha. Por isso cedemos aos relatos chocantes do caos italiano, há um ano, e do nosso próprio caos, em janeiro último.
A ação mobilizadora surge sempre in extremis, na vertigem do colapso dos sistemas de saúde, na iminência da morte de um familiar próximo. “A vizinha está no hospital internada, tem covid” é uma frase que vale mais do que milhões de euros investidos em publicidade institucional.
O que é que podemos aprender daqui? Por um lado, a humildade de assumir que chegámos ao limite das nossas competências possíveis, na contingência dos recursos disponíveis e das estruturas decisórias esclerosadas e viciadas.
Por outro lado, o mais luminoso, a oportunidade monumental de começarmos de imediato a preparar o futuro. Diz o povo que “atrás de uma serra há sempre outra serra”, e atrás desta pandemia rápido chegará uma outra, e outra depois dessa. Por isso arrisco dizer: a melhor gestão possível para a covid-19 será aquela que permitir uma aprendizagem coletiva, enraizada, consensual sobre a resposta às futuras crises de saúde pública.
É urgente uma síntese multidisciplinar e precisa sobre tudo o que de eficaz e de menos eficaz aconteceu. Uma fotografia viva, que perdure para lá da memória da nossa geração, e que diga aos nossos netos onde é que os avós se reuniam, que espaços produziram mais contágios, que máscaras usavam, o que temiam, que sonhos viram ser-lhes roubados, que humanidade floresceu depois da sua mais velha humanidade.
A memória é o verdadeiro desafio da nossa década.
O ser humano é um bicho estranho. Evoluído na sua travessia filogenética, acelerado cada dia um pouco mais, assemelha-se por vezes a um corredor exausto, preso a uma passadeira de ginásio que não pára nunca, e cuja velocidade exponencialmente cresce até nos rebentar o miocárdio.
Esta civilização moderna que nos parece imposta, amiúde a contragosto, foi na verdade construída a muito custo pelas nossas próprias mãos: artistas geniais, donos da sua própria obra, que hoje aberrantemente a alteram, exageram e destroem, sem dó nem piedade, esquecendo a vida antes da obra e o esforço nela investido. Procuramos um sei-lá-o-quê de novo, sempre diferente, talvez capaz de nos convencer de que estamos aptos ao desafio da superação.
Um dos sinais capitais da nossa ambiguidade intrínseca é o amor pela intencionalidade. A construção de uma lógica para o que acontece, sob a forma de uma explicação racional, é que nos alimenta inteiramente a fome de progresso. Desabituámo-nos da sombra cavernosa da nossa humanidade visceral, da nossa aleatória e caótica felicidade genética. Pequeníssimos, organizamos papelada, tiramos fotocópias, elegemos representantes: e nesta burocracia procuramos o amor que perdemos no dia em que abandonámos a natureza humana.
Também a medicina pode fazer-se percorrendo um desses dois trilhos fundamentais. O caminho evidente dos protocolos clínicos e dos guiões formais permite-nos, com eficácia comprovada, acompanhar os utentes, orientá-los ao longo do tempo e socorrê-los diante o abismo das maleitas e das dores.
Muito antes da medicina está a saúde. É o segundo caminho, o tal caminho sinuoso, cavernoso e visceral, incerto. Como num passeio pela floresta, pode bem acontecer que alguns quilómetros volvidos tenhamos de regressar ao ponto de partida, virar à esquerda onde antes tínhamos seguido à direita, brandir uma catana, às cegas, no silêncio das copas densas, e fazer novas escolhas.
A pandemia do nosso ano 2020 é uma fratura exposta da qual, a grave custo, recuperaremos devagar nos próximos quatro ou cinco anos. Já se escreveram artigos científicos, páginas de jornal e posts de facebook suficientes para uma biblioteca de Alexandria dedicada ao tema.
A lição que 2020 produz pode resumir-se de forma simples: tudo depende de tudo. A interdependência crescente dos mercados, dos países, das economias, das pessoas, das relações: essa é que é a grande marca do futuro que este annus horribilis deixará na memória dos astutos, operando por mecanismos de oposição.
Senão vejamos: o vírus desconhecido das terras distantes da Ásia veio contaminar e fazer adoecer a vizinha da minha avó transmontana, numa terra sem comboios nem autocarros nem aviões. Uma terrinha com meia centena de pessoas, onde não entrou ninguém estrangeiro, infectada por um vírus congeminado algures na promiscuidade genética da velha família dos coronavírus, em grutas de sítios que ninguém desta aldeia visitou ou visitará. E, no entanto, são reais e palpáveis a tosse, a febre, os pulmões desfeitos, a dispneia. Um vírus globalizado, transportado, incubado a um ritmo alucinante.
A resposta clássica da saúde pública fundamenta-se na mecânica elementar do vírus: separando as pessoas, aumentando a sua distância, podemos congelar o contágio e abortar a transmissão. Tudo depende de tudo. A genética do vírus, a mobilidade dos mamíferos que o transportaram, o contacto dos seres humanos com esses animais, a amálgama humana universal.
Alguns – cada vez mais -, poderão dizer que a solução é o isolamento: se tudo depende de tudo, então a distância do outro é a proteção do mal que este nos pode trazer. Esquecem, contudo, que a nossa riqueza humana, cultural, social e económica deriva justamente de séculos de partilha e compromisso, de cooperação e disrupção cíclica, de um diálogo sistemático entre o “nós” e o “eles” ao ponto de se confundirem.
Quando Virchow proclamou que “a medicina é uma ciência social e a política não é mais do que medicina em larga escala”, estava a dizer tudo o que um médico – que é antes de mais um cidadão -, deve aprender. A técnica é apenas a base operacional de um método que não pode deixar de ver a medicina como uma ciência social, a favor das pessoas e que emana das suas circunstâncias culturais.
O “ano viral” tem, assim, uma dupla perspetiva: o mundo do vírus (biológico, epidemiológico, clínico, patológico) e o mundo que reage ao vírus (antropológico, sociológico, comunicacional), a que gosto de chamar o “contra-vírus”. A “má-informação” desestabiliza os fundamentos da credibilidade científica. A desinformação aproveita-se disso e põe em ação um plano de mitificação da doença e desvitalização da realidade. Quero dizer: a distância entre a realidade da doença e a comunicação acerca da doença é que permite um desnível escorregadio em que tropeçamos. Tudo depende de tudo. A desinformação é irmã do populismo, de que muito beneficiam certas correntes políticas. Alimentam-se dela porque se funda na não-crença. Não acreditar é um negacionismo, e negar uma realidade é tirar-lhe a dolência, é fazê-la líquida e mais acomodável dentro dos arquivos do espírito.
Procuro clarificar: o negacionismo científico e o populismo político não são defeitos inerentes ao negacionista ou ao populista. São sintomas de uma resposta inflamatória à realidade, que é a resposta de negação. São produto da ausência de recursos para aceitar, integrar e desencadear mecanismos de reação a uma verdade dolorosa e ameaçadora. Assim, podemos concluir que a chave para esta segunda face da moeda se encontra na educação para a saúde e na comunicação em saúde, que com liberdade podemos resumir ao conceito de Literacia.
A Literacia é que nos permite abrir e fechar portas, gerir a nossa vida, arrumar as gavetas da mente, criar opções e escolher caminhos. Permite-nos encontrar a tal intencionalidade profunda que está na base da felicidade do ser humano, o mais estranho dos bichos.
Tudo depende de tudo. Olhemos para tudo. Cuidemos de tudo. Não há saúde sem medicina, nem deve existir medicina sem saúde. Não há saúde sem felicidade, nem felicidade sem intencionalidade, nem intencionalidade sem literacia. A única solução para os problemas da humanidade é sempre e só mais humanidade.
(Originalmente publicado aqui, em janeiro de 2021)
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