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Conversas do fogo.

por Pedro Ramos, em 17.10.20

 

Há um fogo que arde meigamente, é calor nos pés de um pobre. Lembro da infância a alegria genuína de ver a lareira crepitar, a excitação da fagulha atrevida que se escapava para o conforto do sofá e deixava uma pequena marca negra depois de se apagar. Anos mais tarde, vi no serviço de psiquiatria o braço purgado de uma rapariga a quem a ponta do cigarro acalmava dores maiores. O vício de sofrer, gerir focos de incêndio. 

Em miúdo era esse fascínio do fogo que me levava a ser, proativamente, o empreendedor da sistemática colocação de madeira na chapa em brasa. A avó criticava o abuso, talvez porque as costas se lhe lembrassem do peso dos toros, dos cepos e restante léxico aldeoso (esta palavra não existe, mas é macia). A criança que eu fui, apaixonada pelo brilho como todas, insistia no remexer da brasa, na potência do fole, sempre em crescente estrangulamento.

O fole gritava o vento que animava o fogo, e eu era a brasa de um lume que ardeu antes de mim, e cuja memória conquistei a pulso na confusão de álbuns fotográficos. Às vezes o fumo refluía para dentro da casa, e eu lá percebia que o vento do mundo era mais forte do que o vento do fole, apesar do trabalho dos meus braços infantis. Tudo isto, claro, são lições do fogo. 

Anos mais tarde, creio que no fatídico 15 de outubro de 2017 (o dia é o símbolo), sei que era domingo, regressava eu de carro, sozinho, da casa-casa para a casa-faculdade, isto é, casa-futuro, quando um mar de labaredas se ergueu nas margens da autoestrada, e veio acompanhando durante talvez meia-hora o meu caminho assustado. 

 

 

Ver desapontada a minha ideia infantil do fogo-manso, simplificação para o calor necessário nas noites transmontanas, e desfazer-se (desintegrar-se) como o mato denso que me rodeava, onde pinheiros se transformavam só na sua escaldante sombra de cinzas, fez-me perceber muitas coisas indizíveis sobre a natureza das coisas.

O mesmo fogo, a mesma chama, o mesmo calor. Todas as mesmas coisas iguais, e no entanto o passado e o futuro, o mal e o bem, mãos dadas, o medo desgraçado de quem se arrepia e chora.

O meu interior-passado feito, num instante de clarividência, o interior de um país-corpo inflamado, agonizando ao abandono, e cada oliveira arrepiada na pele da minha avó-cansada, balançando na varanda-que-já-não-há e contemplando o desespero dos homens-novos, imunes ao fogo. 

Porque a faca não corta o fogo, / não me corta o sangue escrito, e a faca que corta o pão artesanal traz a memória digital do fogo-manso que fez da massa o pão, e outras coisas extraordinárias. Graças a deus me forjei.

 

 

 

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L’Incendie II, ou Le Feu (1944), de Maria Helena Vieira da Silva

 

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publicado às 13:27


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