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O sentido esférico do universo também está contido numa tangerina. Fruto pequeno, repleto de sumo como se sonham as pessoas, a casca arrepiada na ponta das unhas é logo o prenúncio do sabor dos gomos. Ácidas às vezes, amiúde doces, como a gente as tangerinas são arrebitadas, arrogantes e frágeis. Vêm em grupo, satisfatoriamente uniformes ao olhar desatento, porém cada qual dona do seu nariz, prontas para uma desinibida demonstração de força: come-se a tangerina com as falangetas em sumo, enterradas no subsolo da casca. Unha com carne. Desarmados, recusamos pegar uma faca ou outro utensílio cortante. Jamais poderia fruta tão pequena vergar humana astúcia. Mas logo os roedores de unhas, ó vítimas das cutículas arrepiadas, se levantam num pranto ácido. Faz parte da estratégia. E ainda nem chegámos à boca, pensam as tangerinas-irmãs, entretidíssimas. O gomo entra inteiro na fenda bucal, inofensivo. Antes, investigámos à transparência a presença de sementes, e toda a matemática inocente do jogo de sedução abre-se sem ábaco. Ansiamos saber com o que podemos contar. Somos imensamente estúpidos. A tangerina oculta as sementes pequenas e inúmeras no seu seio suculento, e só damos por elas quando o dente aguçado perfura a brancura amarga. Segue-se um jogo sujo de cuspidelas sucessivas, e por essa altura já o fruto ganha a partida, para gáudio das vizinhas. Há, certamente, estupendas tangerinas: secas por fora, sumarentas por dentro, sem nada a esconder, sem sementes para trincar. Onde nascem, o que desejam da sua vida-tangeril, por que serras e montes andaram até aqui chegar, ou deve antes perguntar-se: de que estufa plástica, de que combustível, de que pipeta saíram? A lição fundamental é aprender a amar todas as tangerinas, doces ou amargas. Aceitar a acidez de apenas uma é meio caminho andado para que as restantes, contemplativas lá do cesto da fruta em plena cozinha, ganhem pelo assassino uma consideração suplementar, e logo principiem adoçando-se, meio timidamente, como dizendo: é muito o amor que tenho a esta vida luminosa, mas se certa será a vinda da morte, ao menos que seja digna, ao menos que seja doce. Rebentam, verticais, no céu da boca.
Green and Tangerine on Red, Mark Rothko, 1956
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