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Tudo arde no fim.

por Pedro Ramos, em 09.12.21

 

Como fogo num campo de trigo, prolifera assim o negócio da venda de roupa em segunda mão.

O sucesso deriva de uma confluência curiosa de tendências: por um lado, a nova vaga do minimalismo pop, de que é exemplo mais recente a empresária japonesa Marie Kondo e o seu "Método KonMari" (grosseiramente, uma forma de pessoas ricas se divertirem a fingir que são pobres); por outro lado, o interesse crescente pelas questões climáticas e pela necessidade de reduzir o consumo e o desperdício.

O instagram também ficou a lucrar com este novo nicho comercial: o número de páginas duplicou, e cada um de nós é hoje ele mesmo e o seu perfil de second-hand clothes.

A ideia do re-uso suscita possibilidades de reflexão. Os antigos aprenderam pela necessidade a conservar tão bem quanto possível as poucas coisas que, à revelia da miséria, iam conseguindo comprar. A distância curta entre a produção e o consumidor gerava uma consciência aguda sobre as implicações da manufatura: como trataríamos os sapatos que calçamos se assistíssemos, diariamente, ao moroso espetáculo público da sua criação artesanal?

Por mais que a produção aumente, e com ela o transporte de mercadorias, as trocas comerciais, o consumo e a globalização, as nossas ruas familiares estão cada vez mais vazias e os pequenos comércios em vias de extinção. Caminhar no passeio parece mais um exercício radical, a que os estacionamentos abusivos, as dezenas de trotinetas elétricas mal parqueadas, os pavimentos agrestes ou desnivelados acrescentam dificuldades.

Aprendi na Granta sobre Rashid Hussein. Palestino, poeta, tradutor, nacionalista árabe. Foi morrer na noite caótica de Nova Iorque, entre copos e cigarros, num incêndio que consumiu a sua coleção de fitas cassete, com imagens de poetas a lerem os seus poemas. Escreve Edward W. Said que "a fumaça das fitas asfixiou-o".

Há, decerto, muitas formas de morrer. E transformar-se o amador na cousa amada, conquanto seja na hora última, é já ir mais longe do que a maioria dos martírios ou das vidas banais.

O poeta faz a poesia um pouco como a roupa faz o corpo. Não lhe é fio de existência, não lhe está no sangue, mas traz o seu rosto mais composto - como matéria simples busca a forma. O poema pode despir-se do poeta, rejeitá-lo como um filho que abandona o pai: aceita os riscos de esfarrapar-se ao comprido, no chão frio, como um cachecol ventoso ao luar de outono.

Mas o poema pode haver quem o ampare, criança perdida, quem se prontifique a uma possibilidade de re-uso, re-significação: "O que és continuarás sendo, de muitas maneiras diferentes", mesmo a tempo do toque do carteiro, a embalagem do casaco de malha branca que veio de lá para cá, do outro corpo para este corpo, por preço justo, e justo de vestir-se e de moldar-se.

Além disso, há o problema do referencial. O ser cada coisa o princípio de uma outra. Quantos poemas não deram à luz novos poetas? Um exilado não deixa na terra-natal o seu corpo produtivo, antes o entrega à terra-nova, dedicando o mesmo tempo à construção da memória e à construção do futuro. Cada um decide onde investir os seus materiais pesados, as suas pedras preciosas, pelo menos dentro dos graus de liberdade que nos permitem as mais ou menos espessas cordas da identidade.

Pássaros que crescem num ninho e dele voam sem regresso. Pássaros que fazem o ninho definitivo, e dele partem apenas para sentir o doce sabor do retorno. Pássaros errantes que debicam aqui para pousar acolá, o seu ninho é o mundo inteiro ou mundo nenhum?

 

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Henri Matisse, 'Arbre près de l'étang de Trivaux, c.1916-17

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publicado às 16:55



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