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Para ser grande, despedaça-te. Sê fragmentado, sofrido. Meio anjo sagrado não encontra no conforto da carne mais do que uma pausa para novo desarrumo. Neste chão de terra molhada, nu, digno de riso e indignidade, como se faz com os abutres de hálito cítrico, quando enfim devolvem ao travestido lume das cigarras o seu fel queimado.
Agarrado às oliveiras, desalmado, abana dos ramos curtos o seu desespero: mas nenhuma azeitona cai no chão de sombras, nem no recorte da lua se adivinha providência. Como vim parar aqui, pensa o sujeito. Por que montes desgraçados, campos maltratados, hortos desdenhados me movi. O inferno são os outros, porém todos somos outros dos outros, remexidamente. A algazarra de cães doidos na distância não me orienta no caminho de casa.
Fossem de lâminas luzidias minhas mãos, e gumes meus dedos, e unhas minhas unhas: esgravataria a terra inteira até encontrar a luz, a casa, o caminho. Assim reza o peregrino na sua fé sem santuário, abrigo sem tecto. Anjo caído, mais do que celeste, em si mesmo. Como dizer: encontrado. No seu olhar arrastado, pés dilacerados pelo peso de nenhuma cruz.
Mas há sangue neste corpo, e um coração que bate. Haverá lugares novos para um corpo velho, e sólidas promessas por cumprir. O indigente toma consciência, como dizer: encontra-se desencontrado. E logo o imenso deserto se faz produtivo e útil. Da amarga semente se tira a seiva criadora, se sara a ferida, se recupera o fôlego.
Há sempre a palavra fôlego, para recordar que há futuro. É urgente que a palavra possa respirar. Dar-se à entoação livre. Não há desvalido a quem não valha um pouco de ar fresco, um trago de água que alivie os lábios, uma mão cheia de azeitonas. Que um pedaço de pão nem ao diabo se nega.
Logo nascerá, plena de cuidados, uma madrugada que arrepia de frio e luz. É o movimento lento das cidades a acordar na distância. A aldeia também dá aos motores dos tratores a sua dignidade: de se fazerem lume, depois velocidade, depois trabalho, depois sustento. As máquinas inundam os campos com seus queixumes simbióticos, e a cada pedra, grão de areia, o velho agricultor desculpa-se por ferir a terra.
Ao longe lá vai nascendo, igualmente, o contorno de uma figura enjeitada (preciso de óculos), e é mesmo um homem nu, pés enlameados, ensanguentados, vai cantando enormidades agarrado aos olivais, que diabo, é o zé do povo: preso ao velho agricultor, pai da terra, regressa a casa debaixo do oleado da chuva, aninhado e pobre, e a mãe lá ouve a novidade, aceita justificações, ordena que se tome banho. Este gandulo não aprende.
Mas não era anjo caído, nem diabo vivo, nem desalmado sequer: era só um homem um pouco triste.
Egon Schiele, Grimassierendes Aktselbstbildnis, 1910
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